domingo, 18 de dezembro de 2016

domingo, 11 de dezembro de 2016

Werckmeister Harmonies (Bela Tarr, 2000)

Werckmeister Harmonies é um terrível pesadelo e um belo sonho. É o som e o silêncio. Dia e noite. Preto e branco. Redenção/Condenação. Esqueçam conceitos como ação ou tempo e agarrem-se apenas ao movimento que se estende de um espaço até outro diferente mas estranhamente ligado ao anterior. Atravessamos uma vila húngara, admiramos as suas gentes, as suas casas, os seus lugares comuns, a natureza que os rodeia, a ameaça que se aproxima, a desordem que se materializa e depois desvanece com ainda mais celeridade.

Esta ubiquidade neutra estabelece Werckmeister Harmonies como um ensaio primariamente plástico, e, nesse sentido, é um filme imaculado. Temos 24 frames por segundo em 145 minutos de película e 39 longas cenas, de uma fluidez e mise-en-scène tão etéreas que nos perdemos a contemplar cada milímetro quadrado do ecrã, como se mais nada importasse senão a imagem propriamente dita, não o que significa ou em que contexto se insere, mas apenas as formas e os contrastes daquilo que vemos, sejam pessoas, construções ou paisagens. O que interessa não é o que acontece, mas o que vemos no que vai acontecendo. Apercebemo-nos do terrível facto de que tudo isso se perde a cada segundo que passa e ficamos na dúvida do que é maior, se a tristeza pelo que fica para trás, se o entusiasmo pelo que Bela Tarr filmará a seguir.

Num plano secundário encontramos resquícios de uma história, que nem é sobre ninguém em particular, apesar de ser apresentada à medida que seguimos um rapaz que se confunde com os cenários que atravessa. Janos (Lars Rudolph) conhece tudo e todos, é o nosso guia, destila meia dúzia de frases feitas sobre o cosmos, mas não tem um discurso pessoal. Quando uma espécie de circo chega à cidade, são apresentados aos cidadãos dois atos, que representam perspetivas de vida opostas: apreciar uma baleia, cujo gigantismo e harmonia coloca os homens no seu lugar e os relembra da responsabilidade de viver em sintonia com a natureza, ou acompanhar o “príncipe”, um niilista misterioso que vai instigar revoltas desnecessárias, como tantas que acontecem ao longo da História e por todas as geografias.

Desde a primeira cena que o confronto entre a luz e as trevas é evidente, quando vários homens numa taberna teatralizam um eclipse, coordenados por Janos. Mais para o fim, um grupo ameaçador marcha contra o hospital, transformado por discursos vazios, até chegar a um balneário onde um idoso nu se mantém petrificado. Perante tal demonstração da fragilidade humana, regressa o silêncio e a calma. Pura excelência técnica e contemplativa que desafia qualquer descrição.

9/10

domingo, 4 de dezembro de 2016

It Follows (David Robert Mitchell, 2014)

Aqueles takes longos e silenciosos, aquela mistura de sons e imagens misteriosas e aquela utilização dos elementos naturais para esconder ameaças prestes a ser reveladas que são transversais aos melhores filmes de John Carpenter contribuem para criar uma atmosfera singular - é exatamente isso que David Robert Mitchell parece perseguir em It Follows, essa impressão de que um assassino está à espera num quintal do subúrbio mais pacífico imaginável, de que fantasmas podem saltar do nevoeiro numa banal vila costeira ou até de que aliens se refugiam debaixo da pele de pessoas com que nos cruzamos todos os dias.

Lentamente, somos apresentados a uma família composta por várias mulheres de diferentes idades, na qual a mãe se mantém praticamente ausente e as filhas dividem o tempo entre as aulas, a piscina desmontável e, no caso de Jay (Maika Monroe), encontros com um rapaz que conhece mal. Após fazerem sexo pela primeira vez, ela inicia um monólogo romântico e é um belo cenário de amor que quase nos ilude de que nada se passa, quando, de repente, ele salta-lhe em cima e abafa-a com clorofórmio. O filme começa. Ao acordar, Jay fica a saber que lhe foi transferida, qual DST, uma maldição que a perseguirá sob a forma de espectros lentos e com vontade de matar, apenas visíveis pelo(a) hospedeiro(a).

Sendo impossível de prever onde e quando a alcançarão, ela não pode parar num só sítio nem adormecer, sob pena de ser apanhada durante o sono. As irmãs e os amigos notam uma diferença brutal no seu comportamento e, depois de Jay partilhar esta história sobrenatural, eles acompanham-na numa série de tentativas para decifrar a verdade, incluindo os mais céticos. Para além de jogar com as ansiedades sobre a sexualidade juvenil da forma mais subversiva desde Kids (1995), pondo de lado o realismo extremo de Larry Clark e substituindo-o pela criatividade do cinema de terror, coloca-se um enorme dilema moral através das seguintes opções: deixar-se ser apanhada e morrer, fugir até à exaustão ou passar o vírus a outrem.

Para onde quer que o grupo vá, algo os segue. A união que se gera levará a um excesso de solidariedade? Serão interrompidos por um ato invisível de violência em casa ao abrir a porta do quarto, no parque infantil com algo a saltar de trás de uma árvore ou na margem do lago onde se escondem temporariamente? Pode acontecer a qualquer momento e é incrível como nunca deixamos de ter consciência disso. Os contrastes da cidade de Detroit, a familiaridade das personagens e lugares e a banda sonora a relembrar Halloween (1978) elevam It Follows ao nível de um clássico moderno do género.

9/10

domingo, 13 de novembro de 2016

Waking Life (Richard Linklater, 2001)

Richard Linklater não se ensaia muito para mandar pela janela as convenções narrativas com que a maioria do cinema mainstream se rege, preferindo trabalhar com sucessões de vinhetas, relacionadas apenas superficialmente entre si, para procurar alguma verdade mundana que possa ter uma ressonância intelectual ou motivar um despertar emocional. Regra geral, nem sequer é um momento específico que resume o impacto dos seus filmes, antes esse acumular de situações familiares (que nos obriga a ver com outro olhar) vai deixando a sua marca e, quando se dá por ela, já não estamos em frente a um ecrã mas a explorar as ruas de Viena ou no liceu à caça do que fazer depois das aulas, somos absorvidos pelo momento.

O valor do tempo define-se para construir uma lógica interna de evolução dos acontecimentos. Before Sunrise só faz sentido porque cada minuto da viagem de Celine e Jesse vale mais perto de um minuto do relógio do que estamos habituados, por exemplo. Em Waking Life, a sua perceção é mesmo imensurável, porque a realidade específica na qual a personagem principal deambula é o mundo dos sonhos e sabemos como a passagem do tempo durante o sono é variável. De cada vez que acorda, o rapaz está num sonho dentro de outro sonho, preso dentro de infinitos círculos concêntricos. Com isso, atinge recantos do subconsciente onde encontra ideias filosóficas que a sua mente interpõe através de figuras invulgares.

O facto de ser um jovem a ter esta experiência alinha-se com a simpatia do realizador pelo espírito contestatário daquelas fases em que se quer todas as perguntas e todas as respostas e que, para o melhor e para o pior, se dilui com a entrada na vida adulta e as responsabilidades que isso acarreta. Cada cena pondera a evolução da humanidade, o existencialismo, a importância das artes ou o livre arbítrio com uma eloquência invulgar. São monólogos e diálogos com o professor universitário de química Eamonn Healy, um homem que se imola no meio da rua, o escritor africano Aklilu Gebrewold, um preso com desejo de vingança, um chimpazé que fala, Timothy Levitch, entre outros, no documentário mais estranho de sempre, no fundo.

Resta mencionar que Waking Life é uma animação, escolha surpreendente para um ensaio filmado. A aposta arriscada no rotoscópio, em que a ação foi gravada e os desenhos foram feitos por cima duma projeção posterior em estúdio, reforça a qualidade fluída do estilo minimalista e natural de Linklater. As linhas estão em constante movimento e preenchem estas especulações com pormenores surrealistas e cubistas. O que busca é liberdade total, criativa e conceitual, e nem importa se é possível atingi-la. Waking Life não é igual a nada, o que, por si só, o autojustifica. Como se não fosse suficiente, há pano para mangas a nível de temas de conversa e exercício para os pensadores inquietos.

8/10

domingo, 23 de outubro de 2016

Dazed And Confused (Richard Linklater, 1993)

Não é segredo que os Led Zeppelin pediram emprestadas sem nunca mais devolver as melodias de vários clássicos do seu catálogo. Logo no primeiro álbum encontramos Dazed And Confused, que hoje é descrita como sendo inspirada numa música com o mesmo nome de Jack Holmes, artista com quem Jimmy Page se cruzara ainda no tempo dos The Yardbirds. Inspirada é um eufemismo. Provavelmente consciente das parecenças deste filme com American Graffiti, o realizador Richard Linklater ironiza na escolha do título e segue em frente com a sua visão de um dia na vida de adolescentes americanos, sem receio do pastiche.

George Lucas preferira o mês de setembro em vez do fim do ano letivo numa escola secundária, diferença subtil que torna Dazed And Confused mais relaxado, porque um verão inteiro de liberdade se avizinha e a entrada na universidade ainda não é iminente. As conversas focam-se menos nas incertezas quanto ao futuro ou em relações em risco. Pelo contrário, resvalam para férias, festas, rituais escolares e romances de rápida evolução. Ninguém acaba a trocar a terra pelo resto do mundo, antes a celebrar atos de rebeldia imprudente. Estes elementos estão omnipresentes em ambos, só que em quantidades totalmente inversas.

Os eventos sucedem-se aleatoriamente, não há uma história, apenas deambulações, próprias da juventude. Todas as gerações têm as suas modas e se tentam distinguir das anteriores, mas há estereótipos que parecem perpetuar-se: o bully, o cromo, o atleta, entre outros. O que muda são os comportamentos e, com os anos 70 em pano de fundo, Dazed And Confused pisa mais o risco. O álcool e as drogas disseminaram-se como nunca, metade dos diálogos têm a ver com cerveja ou marijuana. Nas entrelinhas pode-se ler que esta não é a América em estado de graça no pós-guerra, é a América do Vietname, sem Kennedy e depois de Woodstock.

Com Aerosmith, Kiss, Alice Cooper ou Foghat na magnífica banda sonora e Matthew McConaughey, Ben Affleck ou Parker Posey a darem um ar da sua graça, é a contracultura que ganha o papel principal, consistente com o perfil de autor alternativo, antiautoritário e autodidata de Linklater. A forma como alterna o foco entre as várias personagens é mais equilibrada do que em Slacker, o seu filme anterior, não aparecem e desaparecem, vão e vêm, havendo várias interligações. Retrata-se com maior proximidade um determinado espaço e tempo, uma qualidade que foi aperfeiçoando ao longo da carreira.

8/10

terça-feira, 18 de outubro de 2016

BFI London Film Festival 2016

Só para dizer que fiz uma modesta passagem pelo BFI London Film Festival este fim-de-semana, mais concretamente no sábado, onde vi, no cinema Vue em Leicester Square, o novo filme de Paul Schrader, Dog Eat Dog, uma comédia negra com Nicolas Cage e Willem Dafoe em estado de delírio total. Sinceramente, a melhor parte foi o realizador estar presente e pronto para interagir com a audiência. Afinal, estamos a falar do homem que escreveu Taxi Driver, Raging Bull ou The Last Temptation Of Christ, para mencionar algumas  das colaborações com Martin Scorsese.




sábado, 8 de outubro de 2016

Successive Slidings of Pleasure (Alain Robbe-Grillet, 1974)

Uma artista adolescente é presa por supostamente ter assassinado a mulher mais velha com quem vivia. Se por um lado esta insiste que um estranho entrou no apartamento e terá cometido o crime, apesar de lhe pertencer a tesoura usada como arma, por outro diverte-se com a atenção que lhe é dedicada pelo detetive da polícia, o juiz local, o padre e as freiras da prisão, inventando histórias de prostituição, sadomasoquismo e lesbianismo para os chocar – e aos espectadores, diz mesmo uma personagem.

Com Robbe-Grillet as coisas nunca são fáceis de decifrar. Aliás, são propositadamente impossíveis e quando começamos a tentar descobrir o que é verdade e o que é mentira no contexto do enredo é quando o autor passa a ter-nos na mão, porque no cinema tudo é uma ilusão. Assim, é permitido o inexplicável. Successive Slidings Of Pleasure assemelha-se a um labirinto com infinitos becos sem saída e no fim volta-se à entrada. Através de padrões, motivos e repetições somos chamados à atenção para palavras, atos ou objetos que podem ter implicações palpáveis para o caso ou valor puramente surrealista.

A certa altura, o juiz e a adolescente testam-se através de livre associação. O que se conclui através desse método de psicanálise parece ser vago e condicionado pelo que se procura naquilo que se ouve, e cada um procurará algo diferente consoante a sua sensibilidade. Da mesma forma, a pá encontrada num armário pode ou não ter relação com a pá do coveiro que enterra uma amiga da escola. Pela masmorra de tortura medieval em uso pelo clérigo pode estar a ser estabelecido um caso real de maus tratos, um paralelismo simbólico com as bruxas de antigamente ou uma fantasia sexual perversa. E por aí fora.

Tal como em Eden And After, a nudez e a violência são constantes, andam de mãos dadas e têm tanto de perturbador como de fascinante. Robbe-Grillet preenche cada frame de película com a mesma duplicidade de cada página dos seus textos. Ninguém cria um enigma como ele, ou não estivéssemos a falar da pessoa que escreveu Last Year At Marienbad (1961). Hostil à ideia de uma narrativa, em Successive Slidings Of Pleasure constrói outra vez um mundo de provocações intelectuais aberto a todas as interpretações.

8/10

domingo, 2 de outubro de 2016

The Lobster (Yorgos Lanthimos, 2015)

David (Colin Farrell) é um arquiteto em processo de separação numa cidade distópica onde estar solteiro é tratado como um crime. Assim, tem de se retirar para um complexo no campo com todos os confortos de um hotel de luxo, onde será induzido a encontrar uma nova parceira entre os restantes hóspedes, nos 45 dias em que lá pode permanecer, ao fim dos quais é compulsivamente transformado num animal à sua escolha. Logo de início define a sua preferência por lagostas, porque vivem um século, têm sangue azul como os aristocratas e mantêm-se férteis durante toda a vida. Mais à frente, enfatizam-lhe a alta probabilidade de ser apanhado do mar e cozinhado vivo. Como se o absurdo estivesse na opção tomada e não num sistema social que obriga a metamorfoses forçadas.

O filme é hilariante e deprimente em igual medida na apresentação das regras destinadas a controlar as relações da população, tanto na metrópole, onde a polícia interroga quem anda sozinho no shopping, nesta espécie de centro de acolhimento, onde são encenadas situações cujo desfecho é muito diferente quando se tem alguém por perto e quando não se tem, para incentivar as uniões, como na floresta onde se refugiam os desertores, à qual vai parar, em que todos admitem sem inibições quando se masturbam, mas só podem dançar sem contacto físico, porque na cabeça distorcida da sua líder (Léa Seydoux) a melhor revolta não é as pessoas juntarem-se por amor, mas sim não se juntarem sob nenhuma circunstância. Nem em exílio David usufrui de um convívio genuíno e sem restrições.

Com tanto extremismo, não surpreende que na civilização os casais sejam artificiais, agarrando-se a ou inventando insignificantes pontos em comum para justificar a sua permanência na raça humana, e fora dela sejam impossíveis, quando a adversidade até cria condições para se aproximarem naturalmente. Primeiro, David junta-se à mulher mais instável do hotel, propondo simular uma total falta de sentimentos. Quando ela, para o testar, lhe mata o cão, que terá sido o seu irmão, ele, como não é um psicopata, chora, denuncia-se, atordoa-a e foge. Na clandestinidade, aproxima-se de uma míope (Rachel Weisz) só por também o ser, formatado que está para reconhecer esses detalhes como essenciais neste mundo despersonalizado, e até acaba por estabelecer com ela uma ligação tão perto do amor quanto possível.

A líder descobre e cega-a. No fim, ele ameaça tirar os próprios olhos, ou seja, apesar de tudo precisa de continuar a partilhar uma característica aleatória para validar esta afeição, não consegue libertar-se das convenções em que foi criado. Lembrei-me do alheamento visto em Her, ainda que The Lobster não o retrate apenas como consequência das novas tecnologias, estende-o aos valores atuais do ocidente em geral, nem com a leveza de Spike Jonze, antes com a gravidade (e a tortura animal enquanto metáfora) de Michael Haneke misturada com o humor seco de Wes Anderson. Quando temos a natalidade a diminuir, estudos que apontam a geração Y como a menos ativa sexualmente dos últimos 100 anos e a Dinamarca a promover o coito com efeitos reprodutivos através de campanhas de televisão, dá que pensar.

8/10

sábado, 24 de setembro de 2016

Closer (Mike Nichols, 2004)

Closer congregou um texto engenhoso, um elenco adequado e um timoneiro experiente, três atributos primordiais para o sucesso de um filme numa perspetiva clássica, herdada do teatro. O realizador Mike Nichols levava já anos de análise dos meandros das relações humanas, tendo inaugurado a carreira em 1966 com a herculeana tarefa de dirigir Elizabeth Taylor e Richard Burton, o casal mais volátil da história de Hollywood, na transposição da peça Who’s Afraid Of Virginia Woolf?, sobre um matrimónio entorpecido pelo consumo constante de álcool. Clive Owen, como um dermatologista manipulativo, Julia Roberts, como uma fotógrafa deprimida, Jude Law, como um escritor cobarde, e Natalie Portman, como uma stripper à deriva, constroem os papéis com um discernimento profundo do seu alcance. E o argumento fez esses estereótipos colidir de forma a expor as suas vulnerabilidades, que estão cobertas por diálogos cheios de falsidade e arrogância.

A genialidade de Closer reside na sua momentaneidade. Ao focar-se apenas nos pontos de viragem nas uniões e desuniões, encontros e desencontros dessas quatro pessoas, abrem-se valas de interrogações nos períodos intermédios. Vemo-los a confrontarem-se, revelarem-se, agredirem-se e abandonarem-se uns aos outros vezes sem conta, mas e os anos pelo meio durante os quais enganaram os parceiros dia após dia? Quando estavam juntos, faziam os seus programinhas ou iam para a cama, quantas mentiras contaram? Quando não estavam juntos, quantas vezes foram infiéis premeditadamente e depois voltaram para casa e perpetuaram a sua falta de honestidade? Essa intimidade amorfa é considerada pornográfica, não a vemos, ficamos apenas com as roturas, cujas conclusões revelam sempre o valor real das relações, mesmo quando as palavras não condizem com os acontecimentos. Por causa desses vazios, cada cena ganha uma força própria. Menos é mais.

Os filtros na linguagem vão desaparecendo. Os insultos e as avaliações de caráter tornam-se brutais, frequentes e reveladores. À medida que a convivência se vai prolongando, mais fácil fica adivinhar o que fere o outro lado numa discussão. Apenas quando Dan (Law) conhece Alice (Portman) há vestígios de inocência e de desprendimento, e até aí diria que são unilaterais, pois no fim percebemos que a jovem americana perpetuou a maior farsa da história, ao assumir outra identidade durante a sua passagem pelo Reino Unido. Cada espetador terá a sua interpretação sobre quem é a maior vítima das circunstâncias; eu acredito que seja Dan, porque se deixa levar por ingenuidades quando tem de tomar decisões e perde ambas as mulheres, uma para outro homem, a outra… nunca chegou a tê-la. Quanto ao elo mais nocivo, nem me aventuro a argumentar. É irónico que um filme sobre disfuncionalidades consiga ser tão esclarecedor. “Have you ever seen a human heart? It looks like a fist wrapped in blood.”

9/10

domingo, 18 de setembro de 2016

Cannibal Holocaust (Ruggero Deodato, 1980)

Fita icónica do exploitation italiano dos anos 80, Cannibal Holocaust é um dos filmes mais viscerais alguma vez feitos. Pode-se discutir as polémicas que o envolveram, pode-se discutir as intenções do conteúdo, a uns pode fascinar, a outros pode repugnar, mas ninguém fica indiferente aos níveis de realismo e de intensidade que são impostos do início ao fim. Por muito exagerada que pareça a história, por muito descuidado que seja em termos técnicos, esta é uma experiência capaz de fazer qualquer um contorcer-se na cadeira, o que, por si só, representa um triunfo cinemático.

A viagem de uma equipa jornalística americana que se perde na selva amazónica, sendo descobertos, dois meses depois, apenas os vídeos que gravaram durante a sua expedição à procura de tribos indígenas canibais, tem todos os ingredientes para uma chacina de fazer virar o estômago. Realmente, vemos mulheres empaladas, animais mortos, violações em grupo e, claro, sangue a esguichar em cascatas. Se juntarmos a isto as condições exigidas por Deodato para criar a ideia de que se estaria perante um documentário e não de ficção, desde o estilo caseiro das filmagens às cláusulas nos contratos dos atores para não aparecerem em público durante um ano após a estreia, compreende-se que tenham surgido rumores de que muito de Cannibal Holocaust era verdade, ao ponto de a justiça ter sido forçada a abrir uma investigação.

Em todo o caso, muito além desta javardice, merece destaque um aspeto que não salta tanto à vista, que é a estrutura do argumento. Inicialmente segue-se o cientista Monroe, que se aventura no interior da América do Sul com dois soldados para apurar o paradeiro dos repórteres. Acaba por se deparar com a tribo que lhe fornece as tais cassetes, que leva consigo para análise nos EUA. A cadeia televisiva que financiou a expedição inicial solicita uma projeção privada das mesmas, pois têm os seus direitos e podem decidir tornar as imagens públicas. Só nesta altura começa o festim gore e os executivos presentes desistem da intenção de transmitir ao verem os últimos minutos, quando a bizarria se torna, para qualquer espectador, quase impossível de tolerar e conter os vómitos.

Assim, tem-se duas viagens intercaladas e apresentadas em ordem cronológica inversa, aumentando-se a expectativa, na certeza de que nada pode preparar para tanta violência. Os críticos teceram teorias sobre desprezo pelo sensacionalismo dos media, Deodato respondia que apenas queria fazer um filme com canibais. Seja como for, escorre uma enorme torrente de antropofobia, sendo difícil sentir o que quer que seja tanto pelas tribos ameaçadas por gente supostamente civilizada como pela gente civilizada ameaçada por tribos supostamente selvagens. Onde estão os verdadeiros canibais fica ao critério de cada um.

7/10

domingo, 11 de setembro de 2016

The Hateful Eight (Quentin Tarantino, 2015)

A estreia de um novo filme de Quentin Tarantino é sempre um evento, tão próprio é o seu estilo e tão idiossincrática é a sua personalidade. Ainda assim, desta vez ele decidiu levar a expressão a outro nível, reavivar o formato Ultra Panavision 70, que usa a maior bitola cinematográfica de todas e estava desaparecido desde Khartoum (Basil Dearden, 1966), obrigar à substituição dos projetores digitais de salas um pouco por todo o mundo por projetores de película e criar um espetáculo itinerante à antiga para anunciar o seu regresso.

Este circo parece-me particularmente adequado para The Hateful Eight, que representa a “experiência Tarantino” no seu estado mais extremo. Apenas o díptico Kill Bill ultrapassa os 167 minutos deste western. Os capítulos e flashbacks não faltam. Na banda-sonora, consuma o seu fetiche de ter material original do mítico Ennio Morricone. Estão de volta Michael Madsen, Tim Roth ou Kurt Russell, a juntar a outros regulares. O seu truque de abrandar o ritmo com frente a frente intermináveis e juntar protagonistas num espaço reduzido nos clímax para efeito dramático é aqui esticado a uma história inteira.

Corre a ideia de que os filmes deste realizador estão repletos de ação frenética, o que está longe da verdade. A extravagância não tem limites na construção das personagens, nos diálogos sem filtros, na violência explícita ou nos movimentos de câmara, o que dá azo a muito frenesim. No entanto, para compreender o seu funcionamento há que notar como Pulp Fiction culmina num monólogo transcendente à mesa de um diner ou como os heróis de Django Unchained são expostos num jantar de meia hora à luz das velas. As melhores cenas são lentas, compridas, tensas e reveladoras.

The Hateful Eight é isso quase do início ao fim. Marquis Warren (Samuel L. Jackson) crava boleia a John Ruth (Kurt Russell) no meio de uma tempestade até um alojamento conhecido na zona. São ambos caçadores de recompensas, o primeiro acredita na lei da bala, o segundo entrega os criminosos vivos à justiça. Precisamente por isso, transporta consigo Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh, a interpretação mais marcante, com a cara coberta de sangue e os olhos cheios de loucura), que deverá ser enforcada numa cidade ali perto. Eles e outros seis viajantes vão ter de esperar que a neve pare de cair à volta da mesma lareira.

Claro que cada um tem o seu motivo para ali estar e um passado com ramificações até aquele momento. As surpresas precipitam as trocas de tiros, até porque é a mais apurada coleção de misantropos de Tarantino alguma vez vista, o que claramente o divertiu durante o processo de escrita. Ruth espanca a mulher que carrega sem receio de ser apelidado de misógino. No seu masoquismo, Daisy lambe as feridas que lhe abrem na cara. Marquis mente a torto e a direito. O resto do pessoal é racista, tanto contra os pretos como contra os mexicanos (incluindo uma afro-americana que não deixa gringos entrar no seu estabelecimento).

Todos esses rótulos foram usados erradamente ao longo dos anos pelos críticos para descrever o autor em questão, por isso desta vez vira o bico ao prego e ninguém no filme tem quaisquer qualidades redentoras. Claro que não é o seu melhor trabalho, mas se todos conseguissem sambar na cara das invejosas com esta destreza e esta criatividade, o mundo seria um lugar melhor. The Hateful Eight é um espetáculo que só podia vir da cabeça de uma pessoa à face do planeta, um western na neve mais impiedoso que Day Of The Outlaw (André De Toth, 1959) que se assemelha a um whodunnit mais exaustivo do que Reservoir Dogs.

8/10

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Goldfinger (Guy Hamilton, 1964)

Para muitos, Goldfinger é o ponto alto da passagem do agente secreto James Bond para o cinema. A interpretação a cargo de Sean Connery, a banda sonora com a voz de Shirley Bassey e a imagem da loira platinada morta por sufocação depois de ter sido coberta em tinta dourada e abandonada numa suite do fabuloso Hotel Fontainbleau em Miami são chamarizes eficazes. Não lhe falta estilo nem ousadia. É inaugurada a tradição da sequência pré-créditos sem relação com o resto do enredo, aqui completa com o ator escocês a envergar um blazer branco com uma rosa vermelha na lapela e a segurar num cigarro no preciso momento em que uma bomba por ele plantada explode nas redondezas, porque “cool guys don’t look at explosions”. É usada a alcunha mais badalhoca de toda a série, Pussy Galore, uma aviadora que lidera um grupo de aprendizas femininas que só vestem licra justinha quando estão nos comandos. Várias imagens de marca que hoje damos como garantidas tiveram a sua origem aqui.

Até agora nada de negativo, apreciando-se esta mistura de mistério internacional, humor sarcástico e estilo extravagante, como é o meu caso. O agente do MI6 que seduz todas as mulheres que lhe aparecem pelo caminho e que resolve todas as ameaças do submundo do crime com o máximo de discrição é entretenimento de referência. No entanto, sempre torci o nariz a este Goldfinger, essencialmente pelo seguinte: James Bond é inútil nesta história! Basta realçar que passa dois terços do tempo preso. A partir do momento em que Oddjob, o capataz mudo com um chapéu assassino, vassalo do milionário louco do título, apanha o nosso herói a espiar uma fábrica de fundição de ouro, o papel deste resume-se a ter um laser perigosamente perto do abono de família, levar porrada, ser preso, levar porrada e não conseguir desativar uma bomba. Pelo meio, fica por determinar se convence Pussy Galore a mudar de lado quando a viola (!) e a dar o alarme ou se esta era uma agente infiltrada na quadrilha de Goldfinger desde o início.

Estar à mercê do mau da fita a certa altura faz parte da receita de qualquer filme do 007, mas não é preciso levar isso a este exagero. Já para não falar da risível tentativa de vingança do primeiro, que consegue entrar armado num jato privado da CIA que é suposto levar Bond e a senhora Pussy ao encontro do presidente dos EUA. Isto depois de o seu plano de arrombar o Fort Knox, com recurso ao espalhamento de gás tóxico sobre a base militar que o guarda, para matar milhares de soldados, avançando sem resistência para a contaminação da reserva de ouro da maior potência mundial com radiação nuclear, tornando-a inútil e aumentando exponencialmente o valor das barras que passou a vida a contrabandear e a guardar, sair gorado. Apesar da sua relevância no estabelecimento de ideias-chave deste universo cinemático, Goldfinger acaba por ser o mais medíocre da era Connery.

5/10

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

On Her Majesty's Secret Service (Peter R. Hunt, 1969)

On Her Majesty’s Secret Service, ou o filme em que James Bond se casa e a esposa é assassinada horas depois na Serra da Arrábida. O sexto tomo da série do espião mais famoso do cinema é afamado por vários motivos, sendo a passagem por Portugal um deles, ou não tivesse Ian Fleming, o criador da personagem, absorvido inspiração para algumas das aventuras nas suas estadias no Casino e no Hotel Palácio do Estoril. Diz-se que o produtor Harry Saltzman planeara usar praias francesas como local de gravação, mas o realizador Peter Hunt achou que eram cenários já gastos e decidiu-se antes pela província da Estremadura.

Para além de ser a única vez, até agora, que 007 pede um Martini batido, não mexido, no nosso retângulo, é desenvolvida uma história invulgarmente pessoal e regista-se a primeira mudança de ator no papel principal, com a saída do pioneiro Sean Connery e a entrada do inexperiente George Lazenby. O decréscimo de carisma a este nível desilude, é impossível não pensar que, com o escocês a dar a cara, este talvez tivesse sido o melhor Bond de sempre. Podemos, contudo, contentarmo-nos com a presença de Diana Rigg, a noiva, que ainda é das mulheres mais fascinantes que apareceu no grande ecrã.

A Suiça também está em destaque, mais concretamente o cantão de Berna, com os teleféricos e as pistas de neve de Mürren a esconderem um laboratório secreto onde Blofeld (também interpretado por um novo ator, neste caso Telly Savalas) está refugiado, a preparar um conflito biológico. O encontro entre o herói e o vilão só é possível porque On Her Majesty’s Secret Service antecede cronologicamente You Only Live Twice, permitido assim que Bond se infiltre, sem ser reconhecido, com o disfarce de perito em heráldica, contratado para validar um título falso de conde que Blofeld quer usar como fachada.

Esta perseguição ao número um da SPECTRE é facilitada por uma organização criminosa concorrente, pronta a fazer jogo duplo com os serviços secretos para benefício próprio. É assim que entra em cena Draco, o seu chefe, e a filha Tracy, por quem o agente inglês se apaixona, pelo que, no meio do enredo já de si bastante sólido, há essa dimensão sentimental que é muito bem gerida e que se manteve ausente da série até à época de Daniel Craig. Com todos estes elementos diferenciadores, não é de espantar que On Her Majesty’s Secret Service receba frequentemente louvores dos fãs.

8/10

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Morvern Callar (Lynne Ramsay, 2002)

Às vezes somos confrontados com pessoas, situações ou atitudes que mexem connosco num nível primitivo de emoção e que percebemos sem perceber porquê, sem as conseguir explicar coerentemente. Morvern Callar pode ser uma experiência desse tipo ou pode ser uma frustrante sucessão de momentos de irracionalidade pura. A primeira cena pode dizer tudo e pode não dizer nada, mas dirá demasiado àqueles que imediatamente quiserem julgar a personagem principal. O namorado de Morvern está deitado no chão da casa onde viviam, morto, com os pulsos cortados, e é impossível dizer se Morvern se sente triste, contente, se sente o que quer que seja perante tal cena. E esse é o cerne da divisão entre espectadores que adoram este filme e espectadores que o odeiam. Porque mesmo que pouco ou nada do que ela faça a partir desse ponto seja razoável, simplesmente será difícil apreciar a forma como, confrontada com a dúvida, com o suicídio inexplicável de alguém que lhe era próximo, ela recusa sentir-se paralisada e deixa o seu instinto tomar todas as decisões e levá-la aonde quer que seja, já que uma coisa é certa, a sua vida nunca mais será a mesma. Se ela sente raiva ou se sente mágoa é impossível auferir e, provavelmente, até sente tudo ao mesmo tempo, sentimentos contraditórios, porque quando há muitas perguntas e nenhumas respostas ficamos a tatear no escuro e no escuro tudo é igual para o observador destreinado.

Samantha Morton é brilhante. Brilhante. Pega na sua personagem, que é uma personagem que até nem tem muitos traços característicos à partida, que prima por passar despercebida em ambientes sociais, introvertida e pouco faladora, e obriga-nos a prestar atenção a tudo o que faz, a cada gesto ou tique, porque nunca sabemos quando vai revelar algo que possa denunciar a razão porque age constantemente de formas tão imprevisíveis e inescrutáveis. Mas, claro, nunca se vai explicar a ninguém. Não haverão grandes confissões nem grandes prantos. O que só nos obriga a prestar ainda mais atenção. Que é que vai na cabeça desta mulher? Porque é que ela vai a uma festa depois de descobrir o namorado morto? Porque é que abandona a sua melhor amiga sem uma palavra por causa de uma disputa ridícula na viagem que fazem a Espanha? Porque é que sorri, só sorri e porque é que um sorriso em tempo de tragédia é centenas de vezes mais desarmante que uma cascata de lágrimas? Este filme é o existencialismo em imagens e sons, e, tal como o existencialismo, é imensamente frustrante e é imensamente cativante. Lynne Ramsay começa a recolher atenções, e Morvern Callar, no fundo, não é assim tão diferente de Ratcatcher, outro filme em que seguimos alguém que vê a face da morte e prossegue a sua vida a um passo desajeitado. Ramsay opta agora por um trabalho de câmara mais fluído, com menos close-ups e mais distante de Robert Bresson, que sempre me pareceu ter sido uma referência na rodagem da estreia. Morvern Callar é um filme belo, profundo - único.

9/10

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen, 2008)

O grande mérito de Vicky Cristina Barcelona está no equilíbrio que atinge entre os tons cómicos dos filmes de sempre de Woody Allen e o fatalismo melancólico que se tem tornado mais evidente nos últimos anos (ainda que talvez nunca volte a atingir a desolação de um dos seus trabalhos mais esquecidos, Interiors). A história segue duas amigas americanas que decidem passar um verão em Barcelona. Ambas gostam de parecer maduras, uma mais discreta, a outra mais desinibida, contudo a sua real ingenuidade virá a perturbá-las com decisões que não conseguem racionalizar.

Cristina (Scarlett Johansson numa interpretação sem carisma) e Vicky (Rebecca Hall a espalhar subtileza) conhecem Juan Antonio (Javier Bardem com muita classe) e uma teia de relações amorosas começa a desdobrar-se à nossa frente. Ainda que a geometria do guião seja admirável, as ansiedades de Allen não encontram apoio na narração seca e vazia, nem na inabilidade de Javier Aguirresarobe de filmar diálogos que se estendam por mais de uma página, vendo-se uma repetição de ângulos mal trabalhados em várias cenas, mesmo que tente compensar com uma saudável dose de “planos-postal”.

Juan Antonio é direto quanto às suas intenções, oferecendo todos os prazeres que os rendimentos de pintor reconhecido permitem e que os impulsos masculinos cobiçam. Para Cristina, abre-se um mundo de exotismo latino que não hesita em explorar; para Vicky, nenhuma aventura se deve sobrepor à segurança da relação estável que mantém do outro lado do Atlântico, mesmo que a tentação seja difícil de resistir. Talvez como consequência do sol espanhol, desta vez Allen demite-se de intelectualizar o sexo e as personagens envolvem-se com languidez e naturalidade.

A chegada de Penélope Cruz, ao cabo de uma hora, com a sua expansividade, vem dar imensa cor a este filme, que, no fundo, não deixa de ter o seu charme. Como em Match Point, o realizador consegue, aos poucos, introduzir dilemas morais que trazem ao de cima a presença da casualidade nos momentos mais determinantes das nossas vidas. Pode-se ter sorte e azar, pode-se perder oportunidades e desperdiçar tempo. As pontas ficam soltas para Cristina e Vicky, depois de experiências tão distintas, apesar de a casa de partida ter coincidido. Resta-lhes fazer as malas e voltar para casa com uma sensação agridoce.

7/10

domingo, 17 de abril de 2016

Martin Scorsese e as Loiras

Ellen Burstyn em Alice Doesn't Live Here Anymore (1974)

Cybill Shepherd em Taxi Driver (1976)

Cathy Moriarty em Raging Bull (1980)

Catherine O'Hara em After Hours (1985)

Rosanna Arquette em Life Lessons (1989)

Jessica Lange em Cape Fear (1991)

Michelle Pfieffer em The Age Of Innocence (1993)

Sharon Stone em Casino (1995)

Gewn Stefani em The Aviator (2004)

Michelle Williams em Shutter Island (2010)

Chlöe Grace Moretz em Hugo (2011)

Margot Robbie em The Wolf Of Wall Street (2013)

domingo, 3 de abril de 2016

Bride Of Frankenstein (James Whale, 1935)

Para que fique bem claro: Mary Shelley nunca escreveu uma sequela a Frankenstein. Como tal, o curto prólogo deste Bride Of Frankenstein, que consiste num diálogo fictício entre a autora, o marido e o amigo Lord Byron, ambos poetas ingleses de relevo no séc. IXX, tem o sabor amargo de uma justificação mal-amanhada do mítico produtor Carl Laemmle Jr. e da sua direção nos estúdios da Universal para a tentativa de espremer ao máximo a história do médico que gera vida num corpo feito de partes de cadáveres e garantir um novo sucesso de bilheteiras. Nada que seja invulgar nos dias de hoje, na realidade…

A isto segue-se um regresso ao moinho destruído pelo fogo que dita a morte do monstro no final de Frankenstein. Ou assim parecia. Enquanto vamos sendo novamente apresentados a personagens como o presidente da câmara, o pai da menina Maria ou Elizabeth – todas representadas por atores diferentes, daí a necessidade de se gastar tempo a vincar quem é quem – percebemos que Karloff está bem de saúde, tem a franja melhor arranjada e vai continuar a aterrorizar a região. Por outro lado, o amigo e o barão foram esquecidos e a casa de família ganhou, inexplicavelmente, uma governanta insuportável.

Henry Frankenstein (ainda Colin Clive), que viramos a ser atirado do topo do moinho no primeiro filme, é declarado morto e depois vivo em segundos, como se ele próprio renasce-se. Sem quaisquer mazelas físicas, o que é mais impressionante. Ou ilógico, depende da perspectiva. Como já não há doutor Waldman, outro professor da universidade vem bater-lhe à porta, um menos cético e íntegro que o anterior, o doutor Pretorius, que tem conduzido as suas experiências paralelas com a existência humana. A sua base teórica é mais biológica e menos tecnológica, tendo cultivado pessoas em miniatura, que guarda e jarros de vidro.

É uma ideia bizarra, que o argumento não consegue explicar para além de que terá sido desenvolvida uma espécie de semente. Por ironia, o método de Pretorius tem aspeto de ser mais eficaz do que a engenharia eletrotécnica de Frankenstein, o único problema, como o próprio admite, é o tamanho dos espécimes. Por razões que não se compreendem, nada disso volta a ser mencionado e este concorrente tenta convencer o novo barão a prosseguir o seu já conhecido trabalho. Elizabeth vai ter de esperar outra vez, é o que faz melhor, tirando berrar de medo.

O monstro não se limita a vaguear pelas montanhas. Aprende a falar, a beber, a fumar, faz um amigo e acaba por obedecer a Pretorius, ajudando à pressão que se abate sobre Henry para voltar a assumir o papel de criador, desta vez de uma mulher. Fica estabelecido que é possível reverter-lhe o comportamento homicida através da compreensão e quando alguém tolera a sua companhia (simbolicamente, um cego) os notórios laivos de moderação constituem uma variação bem-vinda. No entanto, nunca desenvolve uma consciência moral; dou como exemplo a vontade em ter a noiva que lhe prometem.

Digo isto porque se realmente estivesse a germinar nele um pingo de humanidade, não estaria motivado em fazer alguém passar pelo que tem passado. Mesmo que domado, fica a ideia de que permanecerá animalesco, o que, em certa instância, tornaria irrelevante qualquer tentativa de integração. Quando Tod Browning prosseguiu de Dracula para Freaks, foi no sentido de convidar o público a ver além do exterior e além da estereotipagem. James Whale preferiu reavivar a clivagem entre deuses e monstros, arrastando-se, com uma história menor, por um universo literário que já havia esgotado quatro anos antes.

Nos últimos minutos, para os quais estão reservadas duas reviravoltas que impedem o filme de ser um desperdício (para além da fotografia de John J. Mescall), Karloff irrita-se e destrói tudo e todos que o rodeiem, exceto o casal Frankenstein; Henry deu-lhe vida e agora mantém a sua. Não é misericórdia, é um reconhecimento, um aviso e uma chapada de luva branca desintencional. A noiva, a única alma penada à face da terra com a mesma origem, rejeita-o. O tesão transforma-se em raiva. Impiedosas ironias. Infelizmente, por essa altura já desfilou um sem número de convenções narrativas vetustas que em nada engrandecem o monstro ou acrescentam aos temas.

3/10

domingo, 27 de março de 2016

The Beekeeper (Theodoros Angelopoulos, 1986)

Theodoros Angelopoulos ganhou uma Palma de Ouro, mas nem isso lhe conferiu o reconhecimento devido. Um verdadeiro virtuoso da mise-en-scène, o seu trabalho tem suscitado comparações compreensíveis com Fellini e Tarkovsky pela forma como combina um elevado sentido estético com uma melancolia permanente e propícia à reflexão. Em The Beekeeper, um professor retirado dedica-se à apicultura como passatempo e, com a chegada da Primavera, empreende uma viagem pela Grécia, para as suas abelhas sugarem pólen em várias regiões do país. Todas as personagens principais dos filmes de Angelopoulos parecem estar a passar por fases de introspeção intensa e o seu comportamento é instável. Nadam silenciosamente num mar de solidão enquanto desesperam por contacto verdadeiro com as pessoas que os rodeiam. Às vezes encontram outros como eles pelo caminho, o que os pode levar a escorregar para a total deceção ou a encontrar alguma paz de espírito através de simples gestos de compaixão. Aqui envereda pelo lado mais negro.

A família de Spyros está desintegrada, todos mantêm uma distância nunca verbalizada. No início, a sua filha mais nova parte em lua-de-mel. Spyros levanta-a do chão, segura-a como se fosse um bebé e canta-lhe uma canção de embalar. Ela vai embora. O seu filho vai estudar para Atenas, levando a mãe atrás de si, para o ajudar no dia-a-dia na capital, e a sua outra filha saiu de casa há muitos anos, por razões que não chegamos a perceber. Spyros é daquelas pessoas que se calam mesmo quando têm algo para dizer, e, se por um lado parece deprimido com todas estas divergências, por outro também acaba por fazer pouco para as evitar. Na travessia pelo seu país conhece, separa-se e reencontra várias vezes uma jovem expansiva e frívola, sem lar nem destino, que vive ao sabor do vento e dos desejos dos namorados, que nunca são os mesmos. Ela, desde cedo, provoca-o e procura a sua proteção. Faz sexo no quarto de hotel que Spyros reserva para eles com um soldado que encontra na rua e na manhã seguinte faz a barba do velho, tratando-o como se fosse o seu guardião. Talvez canalizando a sua adoração pela filha mais nova, talvez canalizando também as suas frustrações sexuais acumuladas com anos de afastamento progressivo da esposa, Spyros dá à jovem tudo o que pode, mas começa a exigir contacto físico. Tudo isto é intuitivo, revelado sem palavras, cada cena evoca uma tensão emocional escondida sobre uma calma aparente. A relação está destinada a não durar mais do que a viagem.

Ao contrário do que acontece na maioria dos filmes deste realizador, são raros os planos-sequência longos, os paralelos entre o enredo e a história do sudeste europeu, nem se encontram divagações pelo tempo ou por sonhos para revelar mais sobre a personagem principal, como se vê em Ulysses’ Gaze ou Eternity And A Day. Angelopoulos equilibra sempre todos estes elementos com mestria, mas aqui parece querer preocupar-se quase exclusivamente com a componente humanista, que também lhe é normalmente associada. The Beekeeper é um filme mais frágil, lúgubre e minimalista. Adicionalmente, é talvez o melhor papel de sempre de Marcello Mastroianni, onde a sua subtileza vem ao de cima como nunca. The Beekeeper poderá não ser o filme mais acessível ou canónico de Angelopoulos, mas é cinema paciente e poético como poucos conseguem fazer.

8/10

terça-feira, 8 de março de 2016

Seven Men From Now (Budd Boetticher, 1956)

Dizer que o western é o género mais americano de todos não será propriamente inovador; a constatação tem sido evidenciada por figuras de renome tanto do lado da produção como do lado da crítica. Com o mínimo de conhecimento histórico e alguns clássicos na bagagem, instintivamente se identifica a preponderância das paisagens do país em todas as suas geografias como elemento fundamental para sobrelevar qualquer dilema ou conflito, a exploração dos acontecimentos que moldaram a construção de uma identidade nacional e mesmo os paralelismos com a atualidade que escoam para estas representações do passado. Quentin Tarantino tem sido a voz mais audível de aclamação destas qualidades nos últimos anos.

Nada que André Bazin não tivesse já notado desde os primeiros tempos da Cahiers du Cinéma, revista que ajudou a fundar em 1951. O seu investimento na análise dos filmes de John Ford, Anthony Mann e outros como mais do que objetos de puro entretenimento, como eram a generalidade das coboiadas, muito à conta de representações infantis dos confrontos entre os civilizados caras pálidas e os selvagens peles vermelhas, está documentado, bem como a sua admiração por Seven Men From Now em particular. A secura que Boetticher adota, nos cenários do oeste montanhoso, no fleumático Randolph Scott e na rejeição dos subterfúgios da psicologia, são por si expoentes máximos desta iconografia do rigor estético e moral.

A procura por justiça é uma viagem que não dispensa os acidentes de percurso, mas não pode deixar de ser o destino. Com Ben Stride, xerife caído em desgraça e viúvo desde que do assalto à Wells Fargo da sua cidade resultou a morte da esposa, que trabalhava na companhia financeira, essa viagem é também movida por vingança, talvez a forma mais cinemática de ação/reação. Nada poderá impedir a morte dos criminosos, apesar de serem sete, a continuidade do seu altruísmo, apesar de proteger John Greer (Walter Reed), que não foi brindado com a mesma firmeza de princípios, nem a exaltação da memória da mulher, apesar da tentação que representa a bela Annie Greer (Gail Russell).

Isso é tudo tão inevitável ao ponto de Boetticher atalhar a representação das eventuais contrariedades. Dos disparos fatais já só ouvimos o eco posterior ou só vemos os corpos a cair, nunca o sacar da arma. O fim de Greer virá naturalmente, é desprezável para a personagem principal. Stride e Annie nunca se beijam. Seven Men From Now é surpreendente na sua simplicidade, por conscientemente negar certos estereótipos narrativos. Da mesma forma, o deserto não é um amontoado de areia aborrecido, antes um habitat com uma constância reconfortante que escondeu tesouros de cowboys, testes de bombas nucleares, mitos de contactos com alienígenas, petróleo para explorar e sabe-se lá que outros segredos.

8/10

domingo, 7 de fevereiro de 2016

The Revenant (Alejandro González Iñárritu, 2015)

A qualidade dos filmes de Iñarritu é evidente. Seja nos dramas deprimentes do início da carreira ou na comédia experimental do ano passado, dificilmente se pode contestar que chegam ao patamar de verdade emocional e criatividade técnica a que se propõem. Contudo, é possível argumentar que a consistência não tem sido a sua principal preocupação. Não é uma crítica, apenas uma constatação. O caminho pelo qual vai enveredar a seguir fica cada vez mais imprevisível, o que também ajuda a criar expectativa, como aconteceu quanto a The Revenant, ainda por cima depois dos relatos emergentes de dificuldades na produção, ao ponto de elementos da equipa se despedirem ou terem sido despedidos.

Biutiful estava dependente do grau de realismo exibido desde Amores Perros até Babel para resultar, apesar de já conter tiques espiritualistas, secundários ao cerne da história. Birdman representou uma liberação do processo de montagem enquanto salvaguarda de eficácia, a passagem dos jump cuts para os planos-sequência intermináveis foi uma mudança de estilo radical. Em certa medida, a trilogia da morte, escrita por Guillermo Arriaga, autojustifica-se, existe separadamente num universo uno, e, de seguida, o realizador partiu à procura da sua identidade. Com The Revenant, baralha o que entretanto aprendeu e começa um novo jogo, o do cinema contemplativo.

A curiosidade pelo meio ambiente em que as personagens se inserem tem algo de Terrence Malick. A desarmonia no convívio de europeus e nativos ajuda a associar ao The New World (2005). Alguns pormenores visuais lembram Andrei Tarkovsky, como a igreja vazia e os sonhos repletos de simbolismo, ou o Come And See (1985) de Elem Klimov, porque a beleza natural esconde instintos humanos destrutivos (e o Will Poulter é a fotocópia do rapaz desse clássico bielorusso). O cometa que atravessa o céu ou a avalanche de neve ao longe são daqueles pequenos milagres que nada explicam e, no entanto, acrescentam algo de etéreo. Os mestres supramencionados saberiam apreciar.

Estas meditações não deixam de assentar numa caça vingativa muito direta e violenta. Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) serve de guia a expedições de comerciantes de peles através de zonas inóspitas da América, nomeadamente ao longo do rio Missouri. A dureza dos homens rivaliza com a dos elementos. Glass é perseguido por índios, atacado por um urso e vê um companheiro de viagem esfaquear até à morte o filho. Depois de Essential Killing (Jerzy Skolimowski, 2010) achei que se tinham atingido os limites da intensidade na luta pela sobrevivência. Estava enganado. A diferença é que em The Revenant não se foge de uma ameaça, procura-se satisfazer uma vontade animalesca.

Apenas quando tem a possibilidade de a concretizar vê como é inútil. Até lá, a força de vontade de Glass e os seus métodos primitivos de caça, pesca, aquecimento, manuseamento de feridas e afins surpreendem a cada minuto. A fotografia de Emmanuel Lubezki é de uma clareza e uma fluidez que esgotam adjetivos. O trabalho de DiCaprio idem. Ninguém tem sido tão consistente na excelência das suas interpretações como ele nos últimos 10 anos. Claro que há um tal de Daniel Day-Lewis, mas esse aparece entre o comum dos mortais menos vezes do que o messias. Com esta conjugação de elementos, Iñarritu chega ao ponto alto da carreira. The Revenant é, sem reservas, um dos melhores westerns que eu já vi.

9/10

Mad Max: Fury Road (George Miller, 2015)

Confirmo que nunca tinha visto um filme que se desdobrasse em duas perseguições a rasgar pelo deserto sem fim entre uma cidade escavada dentro de escarpas encarnadas e um acampamento de velhotas motoqueiras armadas com caçadeiras a um camião de guerra guiado por uma mulher maneta e de cabelo rapado por uma horda de homens pálidos doentes incentivados pelo Thrash Metal duma guitarra elétrica dupla com lança-chamas incorporado e liderados por um tirano polígamo com uma máscara esquelética mas acredito que o mundo é agora um local melhor por essa lacuna estar finalmente colmatada pois aqui está o quarto tomo na série Mad Max criada pelo australiano George Miller nos anos 70 que imagina um futuro distópico assolado por guerras territoriais com base na escassez extrema de recursos naturais que em muito se assemelha ao interior selvagem e abrasador do seu próprio país no qual um polícia com um fundo de bondade chamado Max Rockatansky tem de vaguear para sobreviver sem depender ou ter de fazer compromissos por ninguém e acaba por arriscar a vida mais do que seria desejável para exercer diversos atos de justiça dos quais preferiria distanciar-se desde que lhe mataram a família logo no primeiro filme.

Depois de anos e anos de atrasos motivados por todos os motivos e mais alguns este Mad Max: Fury Road é um testemunho de perseverança dum realizador que entretanto se entreteve a furar as expectativas tendo ido do drama de cortar os pulsos com Lorenzo’s Oil a deambulações no campo escolhendo como surpreendente personagem principal um porco em Babe até à animação para crianças com Happy Feet sempre sem esquecer a velocidade vertiginosa a que agora retorna duma criação povoada por personagens de uma bizarria em aspeto e intenções mais prováveis na BD enquanto produtos da decadência que as rodeia e anteriormente povoada por Mel Gibson que assim viu a sua carreira ser catapultada para o estrelato e fazia todo o sentido ceder o papel a alguém mais novo cujo carisma não atraiçoasse o espírito deste panorama pelo que dificilmente poderia ter havido escolha tão certeira quanto Tom Hardy que já tem provas dadas noutras extravagâncias como Bronson ou The Dark Knight Rises se bem que nem um nem outro sejam rivais para o imbróglio que é cair do céu no meio do monopólio de água mantido por Immortan Joe e da sua colérica perseguição pelas noivas escravas que lhe fugiram pelos dedos no espetáculo sónico e visual ímpar de Mad Max: Fury Road.

9/10

Brooklyn (John Crowley, 2015)

A emigração é um fenómeno perene. As motivações podem variar, ainda que tenham sempre como base a vontade/necessidade de procurar uma situação melhor do que aquela que se deixa para trás. Enquanto na Europa se adia uma resposta ao êxodo do mundo muçulmano que atola o Mediterrâneo de embarcações precárias, na América extrema-se o debate sobre o crescente fluxo de mexicanos através da fronteira sul. O potencial do cinema para refletir, e até prever, questões sociais contemporâneas faz com que esta já venha a ser abordada há alguns anos. Eden Is West (Costa-Gavras, 2009), Babel (Alexandro Gonzalez Iñarritu, 2008) e The Visitor (Tom McCarthy, 2007) são exemplos.

Alguns países do velho continente que hoje empurram com a barriga a iniciativa da procura de soluções realistas foram casas de partida para milhões num passado não tão longínquo quanto isso. A Irlanda tem uma relevância geográfica diminuta na recente crise de refugiados e estará a receber 4000 pessoas do médio oriente, mas pertence a uma união onde os movimentos nacionalistas ressurgem com virulência. Na década de 1950, em que Brooklyn decorre, quase 50000 irlandeses trocaram a sua pátria pelos EUA. Claro que as diferenças culturais num e noutro caso não têm as mesmas dimensões; de notar que Eilis (Saoirse Ronan) é branca, católica, fala inglês e tem emprego certo do outro lado o oceano…

A história é parca em conflitos. A Nova Iorque em que a jovem desembarca não é o labirinto em calçada de Gangs Of New York (Martin Scorsese, 2002) ou Far And Away (Ron Howard, 1992), antes a capital do mundo livre no pós-guerra. Apesar de na sua terra natal a acusarem de egoísmo por deixar para trás a irmã mais velha e a mãe, estas apoiam-na, visto a falta de perspetivas de futuro ser evidente. Mantendo-se humilde, Eilis ultrapassa as saudades aos poucos, recebe bons conselhos e acaba por conhecer um italiano com quem pode contar para iniciar uma vida de amor e respeito. No fundo, é uma sortuda, sem lhe tirar o mérito da coragem em emigrar sozinha. Isto até um golpe do destino ironizar com o seu esforço de integração.

Acaba por lhe ser oferecida a possibilidade de ter na Irlanda o que encontrou na América. Decidir entre o local que a viu nascer ou o local que a acolheu é ingrato. Qual é a sua casa? A própria não sabe responder e, na dúvida, segue em frente, escolhe as incertezas do desconhecido sobre a saturação da zona de conforto. Brooklyn é um filme ligeiro com aquela contenção britânica intemporal. Evita as analogias com o presente, mas, pelo tema, é sintomático que esteja nomeado para três Óscares neste momento. Saoirse Ronan tem liberdade total para exibir a sua maturidade e não falha uma nota. Sinceramente, graças a estes olhos azuis até o The Host (Andrew Niccol, 2013) foi bom, por isso nem valia a pena lerem esta crítica, bastava ver o nome dela no poster.

7/10

IMDb 

Carol (Todd Haynes, 2015)

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4/10

Room (Lenny Abrahamson, 2015)

Esta semana, em mais um episódio de “Quando a Realidade Ultrapassa Qualquer Ficção”, temos o caso Fritzl. Corria o ano de 2008 quando a pacata cidade de Amstetten, na Áustria, é colocada no mapa noticioso mundial dias depois de um cidadão sénior chamar uma ambulância para que fosse prestada assistência médica a uma jovem em insuficiência renal que ele teria encontrado com uma carta. Esse banal acontecimento acionaria uma reação em cadeia que levou à descoberta de uma diminuta cave na residência de Josef Fritzl onde o próprio teria aprisionado uma das suas filhas durante 24 anos e com ela tido sete crianças.

A barbaridade dos contornos criminais desvendados e a lógica retorcida das declarações daquele monstro do qual ninguém suspeitava, nem a esposa de um casamento com 52 anos que vivia na mesma casa, eram inimagináveis, mais do que em ocorrências semelhantes anteriores, pela aberrante árvore genealógica. Daí que um livro como Room apenas tenha sido possível após um exemplo desta magnitude e exposição mediática. Nele, bem como nesta adaptação cinematográfica, o foco recai em Jack (Jacob Tremblay), a criança de 5 anos que resulta dos abusos que Old Nick comete sobre Joy (Brie Larson) enquanto a mantém em cativeiro.

Jack nasceu dentro da cabana onde está aprisionado, não conhecendo nada do mundo exterior, exceto o que vê pela televisão, que não acredita ser real, qual alegoria da caverna. Apenas existe o quarto. Entre as lições de leitura, os exercícios de ginástica e a confeção de refeições, é incrível verificar como estas pessoas se adaptaram à sua condição. Lenny Abrahamson desafia-nos a aguentar uma hora de claustrofobia e depressão difícil de processar. Como pode um homem conter tanta maldade ao ponto de fechar uma mulher durante 7 anos para a torturar? Como pode uma mulher sobreviver a isto com sanidade?

Subitamente, há uma fuga, a verdade é descoberta e o filme dedica o mesmo tempo às tentativas de Joy em refazer a sua vida e em mostrar a Jack tudo o que ele nunca experimentou. Por a história ser relatada pelo rapaz, entranha-se uma certa inocência que torna Room delicadíssimo. A tentação de seguir um raptor é antiga, veja-se The Collector (William Wyler, 1965); aqui grudamos às vítimas. Os dois atores principais carregam o enorme peso de uma proximidade forçada, geradora de uma ligação inquebrável mas asfixiante. É uma química do outro mundo, à margem do mundo. Acima de tudo, Room fala sobre o amor de uma mãe pelo filho.

8/10