segunda-feira, 29 de junho de 2015

Electroma (Thomas Bangalter, Guy-Manuel de Homem-Christo, 2006)

A música electrónica dos Daft Punk sempre esteve envolvida por uma estética robótica que ultrapassa os ritmos repetitivos e as letras tecnológicas e se estende aos uniformes pretos e capacetes espaciais que o duo enverga onde quer que vá, como se tivessem acabado de sair da fábrica e não de casa ou dum camarim. Quase como que lembrando os fãs de que estão pessoas por baixo de todo o aparato, ou talvez realçando a crescente capacidade de improviso, decidiram batizar o seu terceiro álbum de Human After All. Essa curiosa, talvez irónica, chamada de atenção é o mote de Electroma, filme realizado pelos mesmos nessa altura, que começou como uma extensão de ideias para videoclips.

Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter nem sequer aparecem em frente das câmaras, continuando assim sem revelar os seus rostos, antes dois actores com o disfarce completo e porte físico semelhante… cujas identidades também não se tornam expressamente conhecidas em qualquer segundo do filme. Aliás, há um momento em que os capacetes lhes saem das cabeças e (suspense) temos a continuação da ilusão de que os protagonistas não passam de obras de engenharia. Conclusão, os artistas são indivíduos que se escondem atrás de personagens robôs que desejam ser indivíduos de carne e osso.

Electroma é compreensivelmente estranho, fragmentado e musical. Logo de início, o duo aparece do nada e começa a guiar pelo deserto até uma cidade como muitas outras que conhecemos do cinema norte-americano, com a particularidade de todos os habitantes envergarem os tais capacetes prateados ou dourados. Os autómatos dirigem-se a uma instalação onde se submetem a uma operação estética, recebendo caras de látex, que passam a exibir orgulhosamente na rua. Contudo, o sol deforma-as e a reacção de quem se cruza com eles é de revolta, escorraçando-os dali para fora.

Segue-se uma longa caminhada pelas areias escaldantes da região, onde sentimos a sua aguda crise de identidade. Por muito que tentem, nunca serão humanos e nunca terão o respeito dos que os rodeiam por tentarem. Genial a analogia visual entre a forma das dunas e uma vagina. Não passa de uma miragem. Lento, com uma história mínima e com recurso a uma banda-sonora de grandes artistas, muitos dos quais nunca tiveram a popularidade dos Daft Punk apesar do talento óbvio, como Jackson C. Frank, o filme entranha-se e fica na memória. Tal como o álbum Human After All e ainda mais Random Access Memories, é interessante como os laivos de experimentalismo do duo podem ser tão acessíveis.

8/10

domingo, 21 de junho de 2015

La Piscine (Jacques Deray, 1969)

A qualidade cinemática das piscinas é inegável. O azul claro do fundo e a ondulação tênue da água podem transmitir calma ou incerteza, consoante o contexto, e, num filme como La Piscine, onde actores mais-que-perfeitos como Alain Delon e Romy Schneider passam horas a mergulhar e a nadar enquanto sopra uma brisa veranil perto de Saint-Tropez, condicionar a nossa percepção da passagem do tempo pela repetição de um simples movimento. Como o filósofo Gilles Deleuze teorizava, o movimento subordina o tempo no cinema quando a dinâmica das personagens ou objectos estão conectados pela montagem a um centro, que pode ser afectado por ou reflectir algo. Esse centro não precisa de ser um organismo, pode ser um espaço, como o apartamento que liga várias histórias em Vive L’Amour (Ming-Liang Tsai, 1994), nem sequer precisa de ser corpóreo, pode ser uma ideia, como o conceito da greve em Strike (Sergei Eisenstein, 1925). A existência de um centro à roda do qual a dinâmica das personagens ou objectos se relacionam deslinda padrões de acção-reacção e, daí, nasce o enredo.

E quantas vezes não vimos já esse espaço aquático confinado, que tanto serve para diversão, como para desporto, como pretexto para ver alguém em trajes menores, como até para matar alguém por afogamento, ser o centro das atenções? Realmente é o que acontece aqui, a piscina da mansão emprestada onde Jean-Paul e Marianne passam férias é presença activa ou passiva em quase todos os momentos, de início porque o jovem casal (nesta altura já não o eram fora da tela, mas continuavam a exibir uma química incrível, como se vê nos avanços e recuos, beijos e amassos quando ainda estão sozinhos), mais tarde por atrair a estadia do amigo Harry (Maurice Ronet) e da sua filha adolescente (Jane Birkin), e no fim por ser explorado o seu lado mais negro e alguém lá morrer numa noite que tinha condições para ser o mais pacífica possível, como as anteriores.

Tirando isso, pouco acontece. Ou seja, abraçamos a indolência com tanta satisfação quanto a que Jean-Paul e Marianne dedicam às suas férias, perdemo-nos a olhar para estes modelos, a apreciar a paisagem da Cote D’Azur, a desejar saltar para a piscina, que falhamos as intermitências desta união e que são logo apontadas quando ela nem hesita em convidar terceiros, que vêem claramente estragar o isolamento que ele estaria a congeminar. Este é um filme de crime, não fosse o realizador Jacques Deray um habitué do género, um pouco como Swimming Pool (François Ozon, 2003) só que menos meta, todavia é também um filme existencialista, como La Notte (Michelangelo Antonioni, 1961) só que em fase de namoro. Jean-Paul não é tão confiante quanto parece e Marianne duvida mais do futuro da relação do que diz. O crime surge bruscamente e não tem repercussões jurídicas. Cai, isso sim, como uma bomba entre os protagonistas, que terão de decidir se os dois anos de união são para continuar ou não passaram de um vazio (mal) dissimulado. E assim, a piscina desaparece – o seu trabalho está feito.

8/10

domingo, 14 de junho de 2015

The Cruise (Bennett Miller, 1998)

Em 1998 tive a felicidade de visitar Nova Iorque por um dia. Sublinho a palavra felicidade, pois não fazia parte do plano. Depois de uma semana de sonho na Flórida a explorar parques de diversões do tamanho de cidades e a atravessar pântanos de carro a ir e vir da costa, o que incluía o ocasional cruzamento com dezenas de alligators, chegou a hora de voltar a terras lusitanas. Por sorte ou azar, uma tempestade na Big Apple permitiu-nos aterrar no aeroporto de Newark, mas não a saída quase imediata para o outro lado do Atlântico, transformando uma escala de um par de horas numa permanência forçada para aí de 15 pares de horas. Com tanto tempo livre, como desperdiçar o acaso num terminal de aeroporto?

O trânsito caótico em direcção ao Lincoln Tunnel obrigou a algum desperdício de tempo, mas a satisfação de chegar à superfície e ter vislumbres dos prédios em tijolo burro perfeitamente alinhados numa imensa teia de ruas paralelas e dos arranha-céus, que me lembro de admirar num livro publicado pela Edinter sobre superestruturas desde que tenho memória, foi indescritível. À minha frente tive o Chrysler Building, o Empire State Building, o Madison Square Garden, o Flatiron Building, o World Trade Center, entre outros. Foi como conhecer alguém famoso e admirar-lhes a altura e o estilo, sem interacções desconfortáveis. Se não tivesse fotografias para comprovar, diria que tinha sonhado essas memórias do século passado.

De forma análoga, The Cruise torna a cidade tão palpável que quase se pode cheirar o asfalto e os cachorros quentes. Pergunto-me se terei passado pela verdadeira personagem que este documentário dá a descobrir. Timothy Levitch era, afinal, um guia de autocarro turístico. Quem sabe. Claro que não estamos a falar de um guia qualquer, mas sim de um poeta urbano que conhece todos os cantos da metrópole em que habita e que é o seu grande amor. “They're writing songs of love, but not for me / A lucky star's above, but not for me / With love to lead the way, I've found more clouds of gray than any Russian play can guarantee / La la la la / Although I can't dismiss the memory of her kiss / I guess she's not - she's not for me. ” Letra de George Gershwin, que viveu a dois quarteirões de distância. “Welcome to New York City.”

A carreira da GrayLine passa por Chinatown, Soho, Wall Street ou Central Park; tantos lugares que constroem a mística da ilha de Manhattan e sobre os quais Levitch improvisa longas e filosóficas elegias em cada círculo percorrido de microfone na mão com turistas de todo o mundo no andar de cima descapotável do autocarro. A excentricidade da sua trunfa gadelhuda, da eloquência das suas palavras e dos seus trejeitos tergiversantes contrastam com o minimalismo da sua existência, que passa por caminhadas solitárias sobre a Brooklyn Bridge, cravar residência junto de amigos e alternar um blazer horrível com outro cujo forro está roto. Uma figura colorida, uma vida a preto-e-branco.

É nesses tons que Bennett Miller filma e dificilmente as silhuetas das construções e a luz que as suas fachadas de vidro, pedra ou terracota reflectem podiam adquirir maior intemporalidade. Ao nível do início de Gentleman’s Agreement ou Manhattan. O realizador tem-se notabilizado pelas biografias de homens dedicados de corpo e alma a uma actividade específica, mais interessado no seu mindset do que em character development. Curiosamente, sem os artifícios da ficcionalização e orçamentos de milhões, a vivacidade é incomparavelmente superior. Tenho receio que os EUA tenham perdido esta espontaneidade e inocência com o 11 de Setembro, dilema inevitável quando chega a sequência final. Só lá indo… ou voltando. E voltando. E voltando…

9/10

domingo, 7 de junho de 2015

Slacker (Richard Linklater, 1991)

Quando se fala em cinema dos anos 90, é inevitável falar daquela que é hoje denominada como a geração VHS. Efectivamente, a proliferação de cópias de todos os filmes e mais alguns na década anterior graças a esse formato de vídeo permitiu que vários jovens com espírito autodidacta desenvolvessem as suas próprias opiniões e o seu próprio gosto de forma independente. Paul Thomas Anderson, Quentin Tarantino, Kevin Smith, entre outros, dispensaram a ingressão no ensino superior e passaram directamente detrás de balcões de clubes de vídeo ou lojas de conveniência para detrás das câmaras, já munidos de conhecimento suficiente para conseguirem materializar os seus primeiros filmes e tornarem-se na voz (ou vista) da juventude.

Richard Linklater foi um deles e Slacker foi um ponto de viragem na carreira. A sua segunda longa-metragem desafia qualquer definição e é produto dum zeitgeist muito específico. Hoje tornou-se lugar-comum dizer que a última década do séc. XX foi também a última culturalmente relevante; não vou tão longe, todavia ficou marcada por uma irreverência juvenil, uma despreocupação urbana e uma esperança quanto ao futuro que contribuíram para estabelecer novos horizontes artísticos. Para Linklater era mais importante captar essa atmosfera, as calças de ganga, o grunge, a MTV, os baldas, os fanáticos das conspirações, no fundo focar-se nas pessoas e deixar de lado as convenções da técnica e da escrita.

Um jovem está a chegar a Austin, sai da central de camionagem e apanha um táxi. Fala pelos cotovelos sobre sonhos e realidades paralelas, apesar de o condutor se manter mudo. A viagem acaba num cruzamento, a tarifa é paga e, num daqueles acasos bizarros, outro carro atropela uma velhota no mesmo sítio e continua a sua marcha. As reacções dos espectadores são variadas, a câmara vira 180° e o tal carro está a estacionar no fundo da rua, depois de ter dado a volta ao quarteirão. O condutor passa a ser a personagem principal. A cada esquina, a cada encontro conhecemos alguém novo que toma conta do filme e tenta (nem sempre com sucesso, é verdade) captar a nossa atenção com as conversas do mais aleatório imaginável.

O verdadeiro Slacker é a câmara, que deambula pela cidade sem destino, sem horários, sem compromissos. Apenas consigo encontrar precedentes para esta sensação de liberdade total em Easy Rider. Tanto um como outro adquiriram, com o tempo, um travo de extravagância anacrónica, mas, quanto mais não seja, continuam a ser objectos fascinantes exactamente por nos transportarem para outra dimensão. Falamos tantas vezes no Portugal profundo, é-nos próximo e sabemos que, longe do litoral, existe um país diferente, mas a América profunda também tem imensos contrastes que, regra geral, só conhecemos através do cinema. Mais do que os seus contemporâneos, Linklater oferece outro olhar sobre o mundano.

7/10