quarta-feira, 8 de abril de 2015

Ikiru (Akira Kurosawa, 1952)

Um pensamento que não consigo afastar é o de Umberto D. (Vittorio De Sica, 1952) ter saído no mesmo ano que um filme tão manipulador, que dá tantas voltas para tentar fazer o público sentir pena do seu protagonista e que tropeça nos seus próprios truques como Ikiru. Umberto não precisa de pena; é pobre, é arrogante, é solitário. Personifica a dificuldade de envelhecer num país a tentar recuperar duma guerra violenta, que dividiu populações e estropiou famílias; no fundo, a dureza da vida. É um homem que nos toca por ser real e contido, num filme que nos toca porque não está incessantemente a tentar transmitir uma mensagem ou a degradar a sua personagem principal para que fiquemos preocupados. Umberto não precisa de ninguém, atreve-se a sobreviver, mesmo que no fim continue como no início: acompanhado apenas pelo seu cão. Umberto D. é um estado de espírito universal numa época muito específica. O homem é ele e a sua circunstância, dizia Ortega Y Gasset. É isso um estudo de carácter.

Já Watanabe é um velho desinteressante com olhos de cachorrinho. Kurosawa desconhece o significado da palavra subtileza, limita-se a ilustrar texto e a tocar música lúgubre, sendo que o texto nem sequer é muito bom. Assim que o filme abre um narrador está já a disparatar sobre o que vai ser mostrado mais à frente. Não, não, não. Não nos próximos 10 minutos ou assim. Basicamente todo o conceito geral do filme. “Watanabe tem cancro. Watanabe vai morrer. Mas ele ainda não sabe, por isso primeiro vamos vê-lo a ir ao hospital. Ok? Então vamos lá começar isto.” Lembra as reformadas que compram a Maria para saber o que vai acontecer nas 5 horas semanais daquela telenovela que tanto gostam e que vão ver de qualquer forma. Enfim. Carpe diem. Ah, que mensagem bela com que Ikiru nos vai presentear.

Então chegamos ao hospital. O médico de Watanabe, por qualquer razão que escapará ao intelecto mais expedito, não lhe diz do que padece, mas podemos acreditar noutro velho, que aparentemente sofre de algum tipo de retardação mental, quando nos informa que, pelo diagnóstico falso do médico (o que parece ser recorrente), o nosso protagonista vai morrer dentro de 6 meses a 1 ano de cancro do estômago. Watanabe, confrontado com a sua mortalidade, reflecte na vacuidade da sua vida enquanto burocrata na câmara municipal (a sua dedicação ao trabalho é tão extrema que nunca faltou um só dia em quase 30 anos de serviço) e decide gastar o dinheiro que amealhou religiosamente ao longo do tempo. Quer viver. Quer sentir-se vivo. Somos levados a crer que é mau beber, que é mau ver striptease, que é mau dar confiança a estranhos, especialmente aqueles (como um escritor que Watanabe conhece num bar) que, diligentemente, tentam trazer algum divertimento sem se aproveitarem de nós.

Watanabe vagueia pelo submundo urbano nocturno e nada consegue afastar a sua mente da doença. Isso é compreensível. O senhor quer, apesar de tudo, manter alguma dignidade. Por isso... começa a seguir uma miúda, colega de trabalho, aí 30 anos mais nova do que ele. Será possível um filme intencionalmente dar mais sinais contraditórios que Ikiru? É difícil. As personagens que rodeiam Watanabe também não têm profundidade, são meros peões que berram e fazem uma série de ruídos estranhos. Os estereótipos que se associam às línguas orientais também vêm de filmes como este e não só do género das artes marciais. Basta pegar numa cópia de The Story Of The Late Chrysanthemums (Kenji Mizoguchi, 1939), Tokyo Story (Yasujiro Uso, 1953) ou Sound Of The Mountain (Mikio Naruse, 1954) para perceber que a cultura japonesa tem muito que se lhe diga em termos de quietude, beleza, expressividade e emoções. Aqui até o filho é um ingrato que apenas quer sacar mais umas coroas ao pai.

O pior é que o coitado lá morre, sem denunciar a sua maleita, e ainda temos uma hora pela frente, durante a qual Kurosawa nos pede para seguirmos todos os secundários nas suas tentativas de perceber porque é que Watanabe acaba a procurar uma vã redenção ao ajudar a construir um parque infantil. Mas o espectador está adiantado e sabe a resposta, ele tinha cancro e quis fazer algo significativo antes de ir desta para melhor! Como um pai a atafulhar comida na boca do seu rabugento rebento, Kurosawa insiste no óbvio através de moralismos básicos; não devemos perder o nosso tempo neste planeta com futilidades, devemos viver cada momento, Watanabe foi um mártir e todos o devem reconhecer como tal. Ninguém precisa de ser alimentado à força com juízos de valor. Precisamos de perspectiva. Apenas isso já teria sido interessante.

2/10

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