sábado, 30 de março de 2013

O Pagador De Promessas (Anselmo Duarte, 1962)


Inspirado pelo neorrealismo italiano, o Cinema Novo foi um movimento brasileiro de grande expressão nos anos 1960 e que deu a descobrir autores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos ou Anselmo Duarte. Usando a fórmula das alegorias urbanas, com histórias contemporâneas e filmagens predominantemente in situ, realizaram filmes de enorme profundidade, para além de visualmente impressionantes e evocativos. Um deles foi O Pagador de Promessas.

Zé do Burro carrega uma cruz feita por si de grandes dimensões da sua quinta até à cidade de Salvador da Bahia, a quilómetros de distância, numa viagem de vários dias e debaixo das mais diversas condições atmosféricas, sempre seguido pela sua contrariada esposa. Faz parte do trato religioso que o agricultor fez com Santa Bárbara e que só mais tarde é explicitado – se Nicolau, o animal que lhe dá a alcunha, deixasse milagrosamente de estar doente, Zé iria oferecer a sua obra à igreja da virgem mártir.

Depois de uma montagem de belas imagens do Nordeste rural, a acção começa com a chegada do casal ao seu destino, de noite. Rosa tem sido tolerante, mas está farta de dormir ao relento. Olha com algum desprezo para a devoção do marido mas, mesmo assim, quando aparece Bonitão, um mulherengo local, a oferecer-lhe ajuda para procurar hotel, tem maus pressentimentos e fica relutante. Zé quer ficar na escadaria da igreja e, tentando ser compreensivo, deixa Rosa ausentar-se acompanhada…

Na manhã seguinte, troca palavras com o padre, que repudia a intervenção de um feiticeiro no processo e o recurso a macumba. A inocência de Zé levou-o a incorrer num pecado, apesar de ser um católico devoto, é mal interpretado e proibido de entrar com a cruz. O homem pagou o auxílio com metade das suas terras, ainda não sabe que Rosa o traiu e, em pouco tempo, o caso ganha mediatismo, os media querem aproveitar-se dele, um taberneiro também, enfim, a desonestidade rodeia-o.

A influência de filmes como The Bicycle Thieves é notória. Tal como na obra-prima de De Sica, a sociedade conspira contra as morais do protagonista, que não prima pela inteligência, mas é inexcedível em bondade. Aqui, no entanto, nunca se sente tentado a desistir, aliás, a dimensão desmesurada que a situação toma só reforça as suas convicções. Percebe, da pior maneira, que os interesses das religiões nem sempre se coadunam com a fé dos seguidores, mas reclama o direito de cumprir a sua promessa.

Essa e outras contradições são intemporais; já o cinismo dos jornalistas assume contornos proféticos, manipulando os factos a seu bel-prazer para subirem na carreira, sem preocupação com a verdade. Isto numa era sem directos televisivos, internet ou Photoshop. O filme pode parecer algo simplista, mas como fábula que é apenas tenta realçar os conflitos da forma mais vívida possível. O poder das imagens e da interpretação de Leonardo Villar é inquestionável.

9/10

2 comentários:

  1. Este filme é enorme. De uma simplicidade (que não é assim tão simples quanto isso ;) ) desarmante. Não podia estar mais de acordo com a tua opinião.

    Cumprimentos,

    PMF

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