quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Cape Fear (Martin Scorsese, 1991)


O primeiro dos dois remakes da carreira de Martin Scorsese, Cape Fear é a história de um violador que, ao fim de 14 anos de prisão, é libertado e toma como tarefa aterrorizar, de forma tão legal e sorrateira quanto possível, a família do seu antigo advogado, que terá sido profissionalmente incorrecto ao defender o seu caso de forma defeituosa propositadamente. Robert de Niro e Nick Nolte substituem Gregory Peck e Robert Mitchum, os protagonistas originais em 1962, que, ainda assim, têm cameos na nova versão.

Este é talvez um dos mais genéricos trabalhos do realizador italo-americano - com isto quero apenas dizer que Cape Fear se insere mais facilmente num género do que um Taxi Driver, um Raging Bull ou um The King Of Comedy, porque de banal, obtuso ou previsível tem pouco. O argumento é muito preciso e conciso, sempre focado nas formas cada vez mais ameaçadoras planeadas pelo criminoso Max Cady para levar ao extremo Sam Bowden, um senhor doutor respeitado e bem vestido, com muitos telhados de vidro.

Mentirosos compulsivos, por vezes com sentimentos de culpa, por vezes destinatários de actos de vingança violenta, são recorrentes nos filmes de Scorsese e neste tomam o palco principal. Cady educou-se sobre a lei e a bíblia aquando da sua encarceração, sabe o mal que Bowden lhe fez, quantos anos podia ter feito a menos, a quantas lutas e sessões de sodomia podia ter escapado se tivesse sido bem defendido, e sabe também que alguém tem de fazer os pecadores pagarem, olho por olho, dente por dente.

Primeiro desaparece o cão da família, depois a amante do advogado aparece desfigurada... mas o mais assustador é a atenção que o ex-presidiário começa a prestar à filha adolescente do casal, Danielle. Cady aproveita-se da sua inocência e hormonas voláteis para a seduzir. Num momento de um desconforto épico, ele faz-se passar pelo novo professor de teatro dela e manipula-a até lhe despertar a sexualidade ao ponto de a pôr a chupar-lhe o polegar. Ele afasta-se de seguida - ainda é só um aviso para o pai.

Repressão sexual é outra realidade presente. A jovem Juliette Lewis é sensualizada ao máximo, apenas ultrapassada por Jodie Foster em Taxi Driver. Num lar em que as infidelidades e as discussões no leito abundam, a descoberta do corpo pode ser um escape. É isso que Cady tenta explorar, até porque sabe que Sam naturalmente o condenará. Será essa repressão também explicação para instintos destrutivos? Que papel representa a religião nesse cenário? Perguntas freudianas que vêem de Mean Streets e The Last Temptation Of Christ.

No clímax, o inevitável confronto físico, mas, nele, uma constatação invulgar: nem prestes a ver a filha e esposa serem estupradas por um psicopata a personagem de Nolte consegue deixar de ser absolutamente patética, preferindo o conformismo à acção. À mercê da natureza, um milagre acontece e uma tempestade abana o barco onde se encontram. A montagem de Thelma Schoonmaker é perfeita ao transmitir a estranheza da situação. Se a família se safa, ainda bem, mas a cobardia de Sam não merece a nossa preocupação.

É nisto que Scorsese se engrandece, na profunda compreensão do verdadeiro alcance de certos caracteres e atitudes de morais questionáveis, na revelação furiosa do lado mais negro da mesquinhez, da traição e da desonestidade, que devemos evitar quando vivemos em sociedade e estamos em família ou entre amigos, senão o sangue fica nas nossas mãos e podemos ser mais perigosos para nós mesmos que qualquer outro factor externo. Talvez chegar à essência com tanta clareza motive tanta boa interpretação.

Aqui, entre Nolte, Lewis ou De Niro é difícil dizer quem está mais em sintonia com estes temas, e isto tudo sem falar do estilo irrepreensível do filme, pejado de pequenos movimentos de câmara que sub-repticiamente plantam nervosismo no nosso cérebro e coberto por um trabalho de fotografia em realismo e em negrume muito semelhante ao de Michael Ballhaus. Cape Fear foi a sétima colaboração de uma das mais lendárias duplas do cinema, Scorsese e De Niro. Provavelmente, será a mais subestimada.

9/10

4 comentários:

  1. De acordo, um filme que à partida pode não augurar nada de extraordinário, seja por ser um remake, seja por ter um género e uma história perfeitamente definidas e pouco interessantes. Isto tudo, e como disse, à partida. Porque, e não fosse ele de Scorsese, à medida que nos envolvemos no ambiente e na história a previsibilidade desaparece, o piloto automático esfuma-se e dá lugar a mais um re-inventivo trabalho do génio italo-americano. Grande filme, e grande experiência, sem dúvida (a comprovar que se pode fazer tudo, e bem feito, com qualquer coisa em mãos).

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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  2. Um grande filme que consegue ser ainda melhor que o original de J. Lee Thompson, que por sinal era um ótimo longa também.

    Abraço

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  3. Nunca vi o original, mas o Robert Mitchum é um dos maiores de sempre.

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  4. Mais uma vez de acordo. O Cabo do Medo é como que Scorsese a brincar a Hitchcock. A sua câmera marca uma presença soberana na condução narrativa - cada um dos seus movimentos tem um papel activo e determinante na construção do suspense, que se intensifica num crescendo sufocante e irreversível à medida que caminhamos para o desfecho brutal.

    http://www.cineroad.net/2012/01/cape-fear-1991.html

    Roberto Simões
    CINEROAD.net

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