terça-feira, 8 de maio de 2012

Martha Marcy May Marlene (Sean Durkin, 2011)


Falar dos Estados Unidos da América não vivendo lá é falar quase de uma realidade paralela que tem tanto de fascinante como de assustadora. O poder, a dimensão e a multitude deste país parecem ser propagandeados e comentados ao ponto de exaustão e mesmo assim conseguem soar tão distantes e inatingíveis, talvez ainda mais para quem é criado numa cultura tão introvertida como a portuguesa. Livros como On The Road de Jack Kerouac, músicos como Tom Waits ou filmes como Two-Lane Blacktop levam-nos por viagens aos confins do território, sugerindo um espírito de liberdade e aventura contagiante, que é, por vezes, motivado por razões obscuras ou que tem consequências torpes.

Martha Marcy May Marlene chega a ser opressivo na sua exploração por esse negrume que também está presente na América mais profunda. De vez em quando aparecem filmes como este, em que quem os faz acusa alguma dúvida ou mesmo descrença nos ideais que se pretende associar à nação, porque para além das histórias de sucesso e riqueza há também histórias de solipsismo e tragédia e porque a sua grandeza é feita à custa de muita deceção. E, no fundo, são estes contrastes que humanizam e tornam interessante uma cultura que perde cada vez mais noção da realidade, à medida que novos paradoxos do capitalismo e da tecnologia alienam as pessoas, ao criarem padrões de vida artificiais e ao vulgarizarem a privacidade.

Por conseguinte, chegamos a esta personagem feminina, que em determinados pontos do filme acaba por ter todos os nomes do título, e cuja confusão, quer se manifeste em termos de comportamento ou raciocínio, é alimentada por uma grande recusa em se conformar com a estupidificação da sociedade e um grande desejo de pertencer a algo. Vemos Martha pela primeira vez em fuga, entrando numa bouça, sem olhar para trás, apesar do chamamento de um homem fora de câmara. Vai ao encontro da sua irmã mais velha, que se conformou voluntariamente à classe média-alta e está bem na vida, alguém que não vê há 2 anos. São órfãs que cresceram separadas, com resultados muito diferentes.

Lucy é delicada e paciente, mas é difícil esquecer que abandonou Martha ao seu destino, por isso não é surpresa que a segunda tente a todo o custo ocultar a sua experiência traumática enquanto membro de um culto naturalista, machista e criminoso que se aproveitou da sua ingenuidade, aumentando as suas inseguranças, transformando o seu comportamento em socialmente inaceitável e abusando do seu corpo, mas mantendo-a presa com um conceito artificial de família. O filme apresenta assim duas realidades: o passado, com uma quinta e uma irmandade calorosa mas distorcida e o presente, com uma casa num lago e uma irmã de sangue aparentemente perfeita mas sem noção.

O realizador Sean Durkin consegue atingir um tom de ameaça e incerteza constante, quer seja graças às atitudes erráticas de Martha, aos silêncios desconfortáveis, à argúcia déspota de Patrick, o líder do culto, ou à ambiguidade de certas cenas, tudo fatores que tornam desconfortável a simplicidade aparente do filme. A mais pequena ação das personagens parece isenta de inocência, quando Patrick apanha uma rapariga a fumar age com uma passividade ameaçadora, quando o marido de Lucy pergunta a Martha quais são os seus planos parece mais interessado em vê-la pelas costas do que perceber porque não a via há tanto tempo, até o ato de experimentar um vestido parece tudo menos natural.

Em Magnolia (Paul Thomas Anderson, 1999) ouvia-se "eu tenho tanto amor para dar e nunca sei onde o pôr", algo que me parece adequado para Martha. O vestido é cor-de-rosa, a cor do amor, e acaba manchado de urina. A identidade desta rapariga está fraturada e ela acaba por nunca reagir condignamente ou ter uma resposta emocional lógica seja em que situação estiver, o que leva o espectador à paranoia. É um papel dificílimo que Elizabeth Olsen (yup, a irmã mais nova das gémeas preferidas do cinema infantil dos anos 90) carrega com perfeição, alternando vulnerabilidade com acrimónia nas alturas mais surpreendentes. Martha conhece 2 famílias e não pertence a nenhuma. Abruptamente, acaba.

9/10

4 comentários:

  1. Eu não havia escutado absolutamente nada a respeito desse filme, de repente várias pessoas comentam o alto nível da produção. Parece-me indispensável. Abraço

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  2. É um grande filme indie americano, vale a pena, mas não é fácil. Espero que gostes! Abraço

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  3. E acaba, tal como todo o filme, instalando incertezas... como se tivéssemos sonhado e nada tivesse sido visto! É aquele tipo de incerteza admirável.

    Gosto bastante de cinema independente, que é onde surgem obras tremendas de cinema e normalmente sem estatuto. É o filme pelo filme.
    Contudo, apesar de achar que o filme é BOM (7/10) não sinto capacidade de subir mais nota, talvez por ser assim tão difuso.

    Destaco a forma como vamos acompanhando duas linhas narrativas (passado/presente) e ambas em crescento no turbilhão de sentimentos e paranoia da realidade. Sinistro e deixa como que intacto o mistério deste culto. A jovem Olsen está muito bem e aguardo pelo indie "Liberal Arts", onde também protagoniza.

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  4. Sem dúvida quanto à "incerteza admirável".

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