quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Death By Hanging (Nagisa Ôshima, 1968)


Pode-se dizer que em 1968 Ôshima ainda não tinha realizado os filmes que mais projeção lhe trariam, mas já tinha bastante reputação (o seu segundo filme, sobre criminalidade juvenil, Cruel Story Of Youth, foi polémico e abriu portas para uma geração que incluía Imamura ou Teshigahara) e, mais importante, bastante maturidade (cerca de 10 filmes no currículo). Uma crescente preocupação com questões políticas e sociais levam-no a idealizar Death By Hanging, um Kafkiano conto sobre um condenado à morte cujo coração não pára de bater após um enforcamento. Após retomar a consciência, chega-se à conclusão que R está amnésico.

Depois de uma introdução em jeito de documentário que descreve, verbalmente e visualmente, com grande atenção ao detalhe, uma câmara de execução e um ritual de execução, o tom do filme muda repentinamente para o absurdismo. Inicialmente, os oficiais presentes são da opinião de que a melhor forma de lidar com o insólito é enforcar R outra vez, mas os representantes do governo exigem que o violador/assassino recupere a memória, o padre acha que se deve determinar se a alma de R, ao contrário do seu corpo, morreu, e o médico simplesmente ignora se existe bibliografia sobre o assunto. Chegam a um consenso de representar para o prisioneiro momentos-chave da sua vida.

A premissa pede muita suspensão de descrença ao espectador, mas consegue criar diversos paradoxos conceptuais, legais, e espirituais. Sendo coreano, o comportamento violento de R é compreensível e condenável para os japoneses que o rodeiam, pois consideram a sua raça primitiva. Por outro lado, os crimes do recluso são justificados por visões sob pretextos nacionalistas. Ao mesmo tempo, os guardas assumem-se de consciência tranquila quanto aos crimes de guerra que cometeram num passado, na altura, recente e que afirmam ter um cariz completamente diferente de qualquer crime semelhante cometido noutro contexto.

Ôshima não hesita em usar mecanismos desconstrutivos de narração e realização, como intertítulos, que assinalam a evolução assimilativa de R da personalidade que lhe atribuem e que parece já não lhe pertencer realmente, ou montagem descontínua, que cria uma sensação de desconforto e afastamento das personagens e que não deixa passar para segundo plano a reflexão das questões levantadas pela ação. Tal como em Godard, salvaguardando as diferenças culturais, o efeito V de Brecht é a referência maior e o resultado final é uma malha densa com um padrão aleatório e rasgos de clareza, donde se vêm fulgir várias contradições sociológicas.

Infelizmente, quanto mais amplo o espectro temático de Death By Hanging, maior a falta de lógica do guião, e cedo cai por terra o efeito surpresa, cómico até, da premissa, para dar lugar ao aborrecimento. O teatro da vida de R é interminável, a meio sai-se da prisão sem razão aparente e uma irmã imaginária de R aparece e desaparece como que por magia. Já para não dizer que é uma desilusão que o filme se assuma anti-pena de morte com o argumento de que a culpa é relativa e o estado é estandardizado, pelo que não terá o direito de punir alguém que não se reconheça nele. Certo, mas, deixando o reino da utopia, todos temos responsabilidades e o estado deve procurar a justiça.

Claro que o direito de se matar sem consequências em nome de um conceito é moralmente tão dúbio quanto matar por impulsos ou necessidades humanas, pelo simples facto de que se condenamos o homicídio este não deve ser aceitável seja sob que forma for. É uma questão delicada que o realizador aborda de forma didática, arbitrária e entediante. Há uma qualidade onírica que é mais fácil de apreciar que todo o resto e que faz o filme valer a pena. Death By Hanging é baseado num caso real cujo protagonista acumulou variados escritos, faceta essa muito admirada por Ôshima. Isto deve ser suficiente para indiciar o quão idiossincrática consegue ser a sociedade japonesa...

5/10

2 comentários:

  1. Nunca mais vi este filme, mas tenho uma boa memória dele. Estreou-se em Portugal no início dos anos 70, com o título de "O Enforcamento"

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    1. O Ôshima para mim está naquele patamar difícil de explicar de realizadores que recomendo e que são originais, mas que nunca consigo adorar. O Peter Greenaway e o David Lynch são a mesma coisa.

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