segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Shock Corridor (Samuel Fuller, 1963)


Shock Corridor abre com uma frase do poeta grego Eurípides: "Aqueles que Deus deseja destruir, primeiro enlouquece." Por outro lado, também devemos assumir que Deus não envereda por caminhos tão dramáticos sem justa causa, pelo que Johnny Barrett irá perder o juízo por um grave pecado. Qual? A vaidade, certamente. Ele é um jornalista inflamável que decide perseguir de forma insidiosa o louvável sonho de ganhar um Pulitzer. Durante um ano elucubra um plano, que consiste em forçar a sua namorada, a stripper Cathy, a fazer-se passar por sua irmã (pelos vistos, ninguém confere a veracidade do parentesco), pela qual ele estará sexualmente atraído desde tenra idade, o que constitui um óbvio distúrbio mental. O objetivo é ser internado num manicómio onde ocorreu um assassinato por explicar e deslindar o mistério por conta própria. Uma premissa algo rebuscada, que origina uma valiosa viagem pela mente humana. Depois de muito treino na área da psicologia, com o aval do seu arrogante editor, Barrett pensa ter adquirido preparação suficiente para iludir os médicos que o seguirão e para manter a sanidade perante a pressão mental a que se irá submeter voluntariamente e sub-repticiamente. Desde cedo que se torna claro que estava certo quanto à primeira parte e errado quanto à segunda. Cathy apela sempre ao bom senso e à humildade, mas em vão, rodeada que está por proto-prostitutas no trabalho e tubarões com zero de sensibilidade fora dele. Vê-la ajudar, relutantemente e sem receber reconhecimento, o homem que ama para o fazer feliz à medida que o perde gradualmente para a demência é aflitivo.

Fuller é um realizador brusco com muito para dizer. Sem contemplação pela excelência técnica e com um grande sentido prático, faz a história avançar com a secura irónica da pulp fiction, povoando-a de pequenos momentos de melodrama e exploitation (com direito a uma mulher a despir-se em palco e ninfomaníacas algo agressivas), não esquecendo, no entanto, que, por detrás do circo que rodeia Barrett a partir do momento em que entra no State Mental Hospital, estão pessoas. Essa humanização da loucura, herança distante do filósofo francês Michel Foucault, é a força de Shock Corridor e um legítimo pretexto para explorar questões latentes da sociedade americana. Afinal, fora do hospício, o circo é ainda maior e tem ainda mais palhaços.

Três dos reclusos presenciaram o homicídio, mas os métodos da polícia aquando da investigação foram insuficientes para extrair pistas sobre a identidade do perpetrador. Aos poucos, Barrett identifica e socializa com as testemunhas - um jovem que julga ser um general da Guerra Civil americana, um físico que se comporta como uma criança de 6 anos e um preto que adquiriu a personalidade de um membro do Ku Klux Klan. Cada um foi sujeito a provações inumanas e representa os extremos a que pode levar uma má estrutura familiar, o racismo, a corrida às armas nucleares ou a guerra, que são denunciados em pequenos momentos de clareza. Os movimentos de câmara e o enquadramento aproximam-nos da subjetividade de cada paciente, cujos monólogos são conspurcados com sibilinas imagens a cor. O convívio diário com estas realidades, a submissão a tratamentos médicos nocivos e a pressão de executar a tarefa que o levou àquele asilo quebram Barrett, fazem-no acreditar que Cathy é mesmo sua irmã, fazem-no ter lapsos de memória, fazem-no perder a voz e o seu futuro fica cada mais distante da glória que persegue cegamente e mais próximo de ser escravizado pelas quatro paredes que o rodeiam. Na sequência mais simbólica do filme, a tempestade que inunda a alma do jornalista exterioriza-se e invade o estreito corredor principal da ala que habita. Neste momento falsamente catártico, temos a confirmação de que Barrett está perdido. Shock Corridor não é subtil nem particularmente bem feito, mas é de uma eficácia tremenda.

8/10

sábado, 28 de janeiro de 2012

LISTAS: Theodoros Angelopoulos


Os 10 filmes preferidos de Theo Angelopoulos:
  1. Citizen Kane (Orson Welles, 1941)
  2. Ivan Groznyy I (Sergei Eisenstein, 1944)
  3. Ordet (Carl Theodor Dreyer, 1955)
  4. 8 1/2 (Federico Fellini, 1963)
  5. Nosferatu (F.W. Murnau, 1922)
  6. L'Avventura (Michaelangelo Antonioni, 1960)
  7. The Gold Rush (Charlie Chaplin, 1925)
  8. Ugetsu Monogatari (Kenji Mizoguchi, 1953)
  9. Pickpocket (Robert Bresson, 1959)
  10. Persona (Ingmar Bergman, 1966)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

NOTÍCIAS: Oscars 2012

Os nomeados para os Óscares foram conhecidos há poucas horas. De notar a ausência de Leonardo DiCaprio e As Aventuras de Tintin, as 11 nomeações de Hugo e as 10 de The Artist. A cerimónia de entrega realiza-se daqui a 1 mês e Billy Crystal voltará a ser o anfitrião! Aproveito para fazer já as minhas previsões nas principais categorias (gostava particularmente de ver Lubeski ganhar finalmente o Óscar e acho que pode mesmo consegui-lo):

Melhor Filme: The Descendants
Melhor Actor: George Clooney (The Descendants)
Melhor Actriz: Meryl Streep (The Iron Lady)
Melhor Actor Secundário: Christopher Plummer (Beginners)
Melhor Actriz Secundária: Octavia Spencer (The Help)
Melhor Realizador: Alexander Payne (The Descendants)
Melhor Argumento Original: Woody Allen (Midnight In Paris)
Melhor Argumento Adaptado: Alexander Payne, Nat Faxon, Jim Rash (The Descendants)
Melhor Fotografia: Emmanuel Lubeski (The Tree Of Life)
Melhor Filme Estrangeiro: A Separation (Irão)

Nomeados

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

TRAILERS: Moonrise Kingdom (Wes Anderson, 2012)

O novo filme de Wes Anderson já tem trailer! Depois de se ter aventurado na animação com Fantastic Mr. Fox, o realizador indie vira agora a atenção para um par de crianças in love e em fuga, com o típico humor seco, os planos geométricos e a melancolia disfarçada de The Royal Tenenbaums e Rushmore.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Moneyball (Bennett Miller, 2011)


Há seis anos vi um filme distinto e subtil como poucos no panorama do cinema americano contemporâneo, um filme que lidava com uma história de violência bem real e a explorava sob várias perspectivas, fossem mais ou menos fáceis de escrutinar e aceitar, um filme sobre um homem à procura duma oportunidade para trabalhar no sentido de mostrar ao mundo algo novo ou algo antigo duma forma nova - esse filme era Capote.

Bennett Miller volta finalmente ao ativo com Moneyball, baseado em factos reais, trocando o Kansas pela Califórnia, os anos 1950 pelo início do novo milénio, a literatura pelo desporto. Brad Pitt interpreta Billy Beane, o diretor-geral dos Oakland Athletics, uma das equipas mais fracas da liga nacional de basebol. Depois duma carreira como jogador marcada pelo insucesso, apesar do seu enorme potencial, o desejo de Beane continua a ser deixar um legado que o eternize.

Vencer a liga é o objetivo, mas tal afigura-se uma utopia para os A's. Com um orçamento muito reduzido e na iminência de perder 3 dos seus melhores jogadores, o clube parece estagnado, à procura de soluções através dos seus velhos olheiros, com os seus métodos antiquados. A frustração de Beane relativamente às tradições conservadoras do basebol e às limitações que vê à sua frente é bem evidente. Um encontro ocasional com Peter Brand (Jonah Hill) muda tudo.

A fazer trabalho de secretária num clube rival, Beane ouve as suas ideias sobre a importância que a matemática podia ter no jogo e como construir uma equipa com base apenas em estatísticas pode ser a solução para uma equipa vencedora. Com o seu estilo tipicamente breve e seco, Beane contrata-o para assistente e desde cedo se surpreende com as análises objetivas de Brand, que ignora o carácter e o físico dos jogadores em favor dos números apenas.

Esta nova forma de pensar encontra vários detratores no meio, a começar pelo treinador Art Howe (Philip Seymour Hoffman). Quando a época começa, os resultados tardam em surgir e o desemprego paira sobre as cabeças destes homens. Estará Beane a reagir arrogantemente aos falhanços que pautaram a sua vida à conta do basebol, depois de se ter recusado a ir para Stanford e de se ter tornado um flop tanto como outfielder e diretor-geral? Será Beane simplesmente incompetente?

Os paralelismos entre Moneyball e Capote revelam-se de forma peculiar. Se em termos estilísticos Miller preza a simplicidade e orienta toda a nossa atenção para as personagens principais, apenas numa análise superficial se poderá achar que estes filmes são veículos para atores populares. Tanto Pitt como Hoffman dão cara e corpo a homens com um grande sentido de responsabilidade e de esforço, que escondem o quanto isso lhes pesa na alma.

Para o realizador, o sucesso vem de encontro àqueles que fazem sacrifícios para o procurar com paciência, mesmo que de formas inicialmente não antecipadas. Ao mesmo tempo, quando esse sucesso é mediático, assume-se como imperativo manter os pés bem assentes no chão. No caso de Beane, é claro que sente uma grande vontade de vencer e isso chocou sempre com a sua vida, tendo perdido outras oportunidades, incluindo a de ter uma família convencional.

Moneyball, para um filme de desporto, contorna algumas regras e convenções, raramente usando jogos como fator de suspense (e a única vez que o faz é através dum silêncio quase anti-climático) ou jogadores como indispensáveis para a narrativa. O holofote é acima de tudo apontado na direção dos bastidores e até para além deles. Cada vez que Beane, pai divorciado, consegue passar tempo com a filha, parece ganhar forças para enfrentar novos desafios.

Claro que, no fim de contas, isto resulta em grande parte por causa de Brad Pitt. Não há em Hollywood uma personalidade com a mesma combinação de carisma, aparência e talento. Bem vestido, sem cabelo facial e de queixo ligeiramente para fora, ele revela um homem digno e sincero que ainda sente o peso das más escolhas que fez no passado, ao ponto de achar que dará má sorte aos Athletics caso veja um jogo destes ao vivo. Mas ninguém se pode distanciar emocionalmente de tudo.

A participação de Philip Seymour Hoffman acaba por, em comparação, ter pouca força, não é fácil simpatizar com Howe, especialmente quando ele começa a receber crédito pela grande mudança de mentalidade operada em Oakland. Jonah Hill é uma agradável surpresa, num papel mais contido que o costume, ainda que, mesmo assim, seja usado aqui e ali para comic relief. Afinal, apesar da elevada qualidade, este filme não deixa de ser algo leve e comercial, certamente mais do que Capote.

Apesar de alguma falta de segurança na montagem e da estranha decisão de fazer a pequena Casey Beane passar por compositora de The Show da cantora Lenka, Moneyball é dominado por um argumento bem escrito e pelo garbo de Miller. E assim, este ano voltei a ver um filme paciente, um filme com menos impacto emocional que Capote mas com a mesma honestidade, um filme sobre um homem à procura duma oportunidade para trabalhar no sentido de mostrar ao mundo algo antigo duma forma nova...

7/10

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

TOP5: Grim Reaper

05. Vampyr (Carl Theodor Dreyer, 1932)
Dreyer cria um dos mais assombrosos e memoráveis filmes de terror de que há memória. Nem completamente mudo nem completamente sonoro, totalmente uma experiência única.

04. The Phantom Carriage (Victor Sjöström, 1921)
O cinema mudo gera aqui uma obra-prima subestimada, um filme nórdico sobre uma lenda nórdica. Frio, muito frio.

03. Metropolis (Fritz Lang, 1927)
Metropolis é um marco - não só pelas histórias que se foram criando à sua volta, como pela sua inegável qualidade e espírito visionário. A aparição do Grim Reaper neste filme assinala o início do fim duma utopia, uma aparição repentina mas marcante.

02. Monty Python's The Meaning Of Life (Terry Jones, 1983)
Adoro esta comédia. Ainda mais do que os 2 outros filmes dos Monty Python. Sim, mesmo. Impossível desgostar dum filme que põe a Morte a dizer "shut up, you american. You americans, all you do is talk and talk and say "let me tell you something" and "I just wanna say". Well you're dead now, so shut up."

01. The Seventh Seal (Ingmar Bergman, 1957)
A definitiva aparição da Morte num filme, a caminhar a terra para cobrar uma vida através dum jogo de xadrez. Bergman no seu melhor.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

NOTÍCIAS: Golden Globes 2012

Naquela que é normalmente conhecida como a preview dos Óscares, a cerimónia dos Golden Globes 2012 ocorreu esta noite, com The Descendants e The Artist a sairem como principais vencedores na área de cinema. Surpresa por ver Scorsese a ganhar melhor realizador por Hugo, mas uma boa surpresa. Destaque ainda para o oitavo Golden Globe de Meryl Streep.

Melhor Filme (Drama): The Descendants
Melhor Filme (Comédia ou Musical): The Artist
Melhor Actor (Drama): George Clooney (The Descendants)
Melhor Actriz (Drama): Meryl Streep (The Iron Lady)
Melhor Actor (Comédia ou Musical): Jean Dujardin (The Artist)
Melhor Actriz (Comédia ou Musical): Octavia Spencer (The Help)
Melhor Realizador: Martin Scorsese (Hugo)
Melhor Argumento: Woody Allen (Midnight In Paris)

Golden Globes

domingo, 15 de janeiro de 2012

Queen Of The Damned (Michael Rymer, 2002)

Queen Of The Damned foi, para muitos, uma péssima adaptação de Anne Rice, para outros um filme de vampiros excitante com uma boa história e muito estilo. Seja como for, será célebre por ser o segundo e último papel da cantora Aaliyah, que morreu num desastre de avião pouco depois de se completarem as filmagens. Difícil de esquecer é também a banda sonora, povoada pelo na altura extremamente popular Nu Metal, em grande parte planeada e composta por Jonathan Davis (Korn). É ele que canta a versão original de Forsaken, mas eu prefiro a de David Draiman dos Disturbed.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Maniac Cop (William Lustig, 1988)


Quando se fala em filmes-B, tem de se falar em Larry Cohen; dificilmente se encontra neste espectro uma figura que tenha atingido um nível de qualidade tão elevado com tão poucos recursos, tanto em termos de argumento, como de realização ou de produção. Entre os seus créditos, está um como escritor do clássico camp Maniac Cop, um thriller atmosférico com contornos de terror sobre um serial killer que se disfarça de polícia e mata sem critérios.

A primeira razão pela qual este filme merece destaque é pelo retrato que faz da Nova Iorque dos anos 80. Suja, noturna e assustadora, na Grande Maçã cada esquina esconde os seus segredos. Nas retas intermináveis, com os seus ténues lampiões e sem vivalma, que se estendem pelo meio de torres de betão, William Lustig descobre a mesma tensão que tornou Where The Sidewalk Ends, Pickup On South Street ou The French Connection memoráveis.

Matt Cordell (Robert D'Zar) personifica essa força malevolente da cidade, da qual os próprios criminosos parecem ter medo, como mostra a sequência inicial, em que dois ladrõezecos se afastam da jovem que perseguem para a deixar ser a primeira vítima do assassino cuja cara é ocultada pela noite e cujo uniforme passa a ser sinal de perigo. Quando numa metrópole com dezenas de milhões de habitantes a força responsável por manter a lei e ordem nas ruas é temida, o caos instala-se.

Lustig e Cohen conseguem estabelecer esta sensação de insegurança, bem como introduzir as personagens e apresentar um sistema policial ineficaz e um sistema político corrupto com uma facilidade notável. Na primeira meia hora percebemos que o caso, a cargo do detetive Frank McRae (Tom Atkins), não vai acabar sem confrontos e as infidelidades do agente Jack (Bruce Campbell) terão consequências, mas mesmo assim, os caminhos cada vez mais improváveis que a história toma não deixam de surpreender.

Cordell era um homem justo que foi emprisionado sem motivo a mando da máfia e, no único flashback do filme, tomamos consciência do seu trágico destino e de que a sua motivação é a vingança, contra o sistema, contra os criminosos, contra a cidade. Encarcerado em Sing Sing, deixado à mercê daqueles que combateu durante anos, é esfaqueado violentamente no chuveiro, numa cena que dá que pensar quanto à originalidade do famoso ataque a Viggo Mortensen na sauna em Eastern Promises.

Alguns dos procedimentos da investigação e fugas preconizadas por Cordell carecem de realismo e minam um pouco o tom sério do filme, mas não deixam de estar bem integrados na ação. A silhueta ameaçadora e o queixo inchado de Robert Z'Dar são inesquecíveis, ainda que a resistência física da sua personagem chegue a roçar o ridículo e a rivalizar com a aparente imortalidade de Michael Myers da saga Halloween. Bruce Campbell tem uma interpretação sólida e a qualidade de Tom Atkins é intocável.

A selva urbana é território fértil para o thriller, onde as mais complexas vidas parecem pequenas peças num puzzle de dimensões imprevisíveis e é provável que Nova Iorque seja dos cenários mais cinemáticos à face da Terra. Com um orçamento de 1.000.000$00, Maniac Cop é imperfeito, por vezes até intencionalmente engraçado (é curiosa a facilidade com que Jack supera o desaparecimento da sua mulher, por exemplo), mas não deixa de ser competente e emocionante o suficiente para se querer, se ter de ver até ao fim.

7/10

domingo, 8 de janeiro de 2012

NOTÍCIAS: TCN Blog Awards 2011

A cerimónia de entrega dos TCN Blog Awards 2011 decorreu ontem em Lisboa. O Narrador Subjectivo não alcançou a vitória na categoria a que estava nomeado, mas ser considerado pela comunidade um dos 8 melhores novos blogs de cinema/televisão é já um motivo de grande orgulho para mim e por isso um muito obrigado. Parabéns aos vencedores!

Melhor Blogger: Pedro Andrade (TVDependente)
Melhor Blog Individual: Keyser Soze's Place
Melhor Blog Colectivo: TVDependente
Melhor Artigo: Mundo Mágico vs. Caixinha Mágica (TVDependente)
Melhor Crítica: Game of Thrones: 1×01 – Winter is Coming (HBO) (TVDependente)
Melhor Iniciativa: José e Pilar aos Óscares (Split Screen)
Melhor Novo Blog: Blockbusters
Melhor Revista: Empire

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Death By Hanging (Nagisa Ôshima, 1968)


Pode-se dizer que em 1968 Ôshima ainda não tinha realizado os filmes que mais projeção lhe trariam, mas já tinha bastante reputação (o seu segundo filme, sobre criminalidade juvenil, Cruel Story Of Youth, foi polémico e abriu portas para uma geração que incluía Imamura ou Teshigahara) e, mais importante, bastante maturidade (cerca de 10 filmes no currículo). Uma crescente preocupação com questões políticas e sociais levam-no a idealizar Death By Hanging, um Kafkiano conto sobre um condenado à morte cujo coração não pára de bater após um enforcamento. Após retomar a consciência, chega-se à conclusão que R está amnésico.

Depois de uma introdução em jeito de documentário que descreve, verbalmente e visualmente, com grande atenção ao detalhe, uma câmara de execução e um ritual de execução, o tom do filme muda repentinamente para o absurdismo. Inicialmente, os oficiais presentes são da opinião de que a melhor forma de lidar com o insólito é enforcar R outra vez, mas os representantes do governo exigem que o violador/assassino recupere a memória, o padre acha que se deve determinar se a alma de R, ao contrário do seu corpo, morreu, e o médico simplesmente ignora se existe bibliografia sobre o assunto. Chegam a um consenso de representar para o prisioneiro momentos-chave da sua vida.

A premissa pede muita suspensão de descrença ao espectador, mas consegue criar diversos paradoxos conceptuais, legais, e espirituais. Sendo coreano, o comportamento violento de R é compreensível e condenável para os japoneses que o rodeiam, pois consideram a sua raça primitiva. Por outro lado, os crimes do recluso são justificados por visões sob pretextos nacionalistas. Ao mesmo tempo, os guardas assumem-se de consciência tranquila quanto aos crimes de guerra que cometeram num passado, na altura, recente e que afirmam ter um cariz completamente diferente de qualquer crime semelhante cometido noutro contexto.

Ôshima não hesita em usar mecanismos desconstrutivos de narração e realização, como intertítulos, que assinalam a evolução assimilativa de R da personalidade que lhe atribuem e que parece já não lhe pertencer realmente, ou montagem descontínua, que cria uma sensação de desconforto e afastamento das personagens e que não deixa passar para segundo plano a reflexão das questões levantadas pela ação. Tal como em Godard, salvaguardando as diferenças culturais, o efeito V de Brecht é a referência maior e o resultado final é uma malha densa com um padrão aleatório e rasgos de clareza, donde se vêm fulgir várias contradições sociológicas.

Infelizmente, quanto mais amplo o espectro temático de Death By Hanging, maior a falta de lógica do guião, e cedo cai por terra o efeito surpresa, cómico até, da premissa, para dar lugar ao aborrecimento. O teatro da vida de R é interminável, a meio sai-se da prisão sem razão aparente e uma irmã imaginária de R aparece e desaparece como que por magia. Já para não dizer que é uma desilusão que o filme se assuma anti-pena de morte com o argumento de que a culpa é relativa e o estado é estandardizado, pelo que não terá o direito de punir alguém que não se reconheça nele. Certo, mas, deixando o reino da utopia, todos temos responsabilidades e o estado deve procurar a justiça.

Claro que o direito de se matar sem consequências em nome de um conceito é moralmente tão dúbio quanto matar por impulsos ou necessidades humanas, pelo simples facto de que se condenamos o homicídio este não deve ser aceitável seja sob que forma for. É uma questão delicada que o realizador aborda de forma didática, arbitrária e entediante. Há uma qualidade onírica que é mais fácil de apreciar que todo o resto e que faz o filme valer a pena. Death By Hanging é baseado num caso real cujo protagonista acumulou variados escritos, faceta essa muito admirada por Ôshima. Isto deve ser suficiente para indiciar o quão idiossincrática consegue ser a sociedade japonesa...

5/10